Artigo publicado originalmente na edição de Maio/Junho de 2022 da Edifícios e Energia

Confrontada com a realidade, a União Europeia percebeu que o seu futuro depende da capacidade para se libertar dos combustíveis russos. O plano para o fazer já foi traçado e a eficiência energética nos edifícios é ponto assente. Descarbonizar os edifícios será outra das prioridades, mas há que perceber quais as melhores soluções para o fazer.

“A era dos combustíveis fósseis na Europa está a chegar ao fim” – a declaração é da presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, citada pelo Euractiv, e foi feita em reacção ao corte do abastecimento de gás natural à Polónia e Bulgária, ordenado pelo Kremlin, por estas se terem negado a fazer o pagamento em rublos. Segundo a governante, Vladimir Putin está a usar o fornecimento energético como forma de chantagear os países europeus, forçando-os a cessarem o seu apoio à Ucrânia. Anunciando que os dois países europeus estão, agora, a receber gás dos seus vizinhos, e face a “mais uma provocação” de Moscovo, as palavras de von der Leyen denunciam a determinação da União Europeia (UE) em cortar a sua dependência energética da Rússia.

Antes do conflito, a UE importava 90 % do seu consumo de gás, sendo a Rússia responsável pelo abastecimento de mais de 40 %. O país era também a origem de 27 % das importações de petróleo e de 46 % das importações de carvão da UE.

A agressão militar à Ucrânia a 24 de Fevereiro ditou a necessidade, impulsionada também pelas sanções económicas que o Ocidente tem progressivamente imposto ao país governado por Putin. E se a energia começou por ser um assunto intocável, passados mais de dois meses desde o início do conflito, esse já não é o caso. Accionado o alarme europeu, a CE apresentou, logo a 8 de Março, medidas de emergência para fazer face à escalada dos preços da energia e um plano para, até ao final do ano, reduzir em dois terços a procura de gás russo e, ainda antes de 2030, tornar a Europa independente da importação de combustíveis fósseis do país.

A estratégia chama-se REPowerEU e assenta em dois eixos: acelerar a redução do uso de combustíveis fósseis nos edifícios, na indústria e no sistema eléctrico, e diversificar as fontes de fornecimento de gás. Para isso, a aposta será em medidas de promoção da eficiência energética, no aumento do uso de fontes de energia renováveis – nomeadamente solar fotovoltaica, eólica e uso de bombas de calor – e na resolução de condicionantes relacionadas com a infraestrutura.

“O princípio ‘eficiência energética primeiro’ é mais relevante do que nunca e deve ser aplicado em todos os sectores e políticas, com medidas de resposta à procura [demand response] em complemento a medidas do lado da oferta”, lê-se no plano, que refere ainda: “além de projectos residenciais e de construção [mais eficientes], o fornecimento energético com base em [energias] eólica, solar e outras fontes de baixas emissões para a produção de electricidade vai também ajudar a reduzir a nossa dependência do gás.” Já no que se refere à diversificação no abastecimento de gás, a intenção passa por aumentar as importações a fornecedores não-russos, nomeadamente via gás natural liquefeito (LNG) e gasodutos, e apostar em maiores volumes de biometano e produção e importação de hidrogénio renovável.

O REPowerEU e os discursos dos representantes europeus não deixaram margem para dúvidas sobre se a UE iria prosseguir ao mesmo ritmo com os objectivos já definidos em matéria de energia e clima. Para já, a direcção é irreversível, sendo que a estratégia apresentada em Março depende das acções previstas no Fit for 55 para se libertar da ligação aos russos. A implementação total das propostas do pacote legislativo – no qual se enquadram as directivas para as renováveis, para a eficiência energética e para o desempenho energético dos edifícios – resultará numa redução de 30 % do consumo anual de gás, o equivalente a 100 mil milhões de m³, em 2030. Com o REPowerEU, a UE espera conseguir “remover gradualmente o uso de pelo menos 155 m³ de gás fóssil, que é o equivalente ao volume importado da Rússia em 2021. Num ano, podemos alcançar uma redução de cerca de dois terços, terminando, assim, a dependência excessiva da UE de um único fornecedor”, diz o comunicado oficial.

“Desintoxicação” de combustíveis russos

Resolver a dependência energética exterior, nos edifícios, passa, necessariamente, pela descarbonização do sector do aquecimento e arrefecimento (A&A). Cerca de metade do consumo energético europeu é para fins de A&A, o que fez a Comissão Europeia identificar o sector como “crucial” para o cumprimento das suas ambições em matéria de ambiente e clima. Só nos edifícios europeus, estima-se que 79 % do total de energia final consumida seja para aquecimento e águas quentes sanitárias. Nos últimos anos, as renováveis têm vindo a ganhar terreno, mas há muito por fazer: dados do Eurostat mostram que, em 2020, 77 % do A&A na UE era feito com combustíveis fósseis, nomeadamente gás natural. Em Portugal, o cenário é mais favorável, com as renováveis a representarem 41,5 % das fontes de energia usadas para fins de A&A.

O potencial contributo da energia solar e das bombas de calor é destacado pelo plano europeu REPowerEU, traçando um claro caminho para a electrificação dos consumos nos edifícios como resposta à incerteza do aprovisionamento energético. Também um relatório sobre o futuro dos edifícios da European Climate Foundation (ECF) e da European Alliance to Save Energy (EU-ASE), publicado em Março, dá essa indicação, identificando as bombas de calor como uma “via mais rápida” para a descarbonização, comparativamente às “caldeiras a hidrogénio inovadoras”. Se aliadas a uma renovação energética do parque edificado, as bombas de calor podem ajudar a “poupar o equivalente a 25 % das actuais importações de gás russo até 2030”, “fortalecendo a economia e a segurança energética da Europa”, diz a mesma fonte.

A nível europeu, as bombas de calor parecem ganhar protagonismo como a solução mais promissora para a descarbonização, mas será essa a opinião dos especialistas nacionais? Será esta a tecnologia que melhor servirá o contexto português? Num inquérito feito pela Edifícios e Energia a algumas empresas do sector, as bombas de calor nem sempre são apontadas como as mais promissoras, mas fazem, inequivocamente, parte do TOP3 de soluções tecnológicas para aquecimento com maior potencial para contribuir para o cumprimento dos objectivos europeus em matéria de clima e de independência energética no contexto português.

“Será, talvez, a solução mais polivalente e aquela que aporta mais benefícios, mas é preciso perceber que ainda não é um produto acessível a todos os consumidores e instalações”, sublinha Carlos Ribeiro, da Vaillant. Já para Hugo Velho, Daikin Heating Business developer, não há dúvidas de que as bombas de calor podem ser “um forte aliado” para responder quer aos efeitos da actual crise na volatilidade e flutuação de preços de combustíveis, quer às metas de descarbonização. Destacando os equipamentos ar/água como a solução “mais eficiente, que assegura a climatização e a produção de águas quentes sanitárias (AQS)”, e flexível, por se adaptar a instalações já existentes, o técnico está convencido de que a conjuntura que vivemos vai “alavancar a procura por estas soluções [bombas de calor no geral], o que requer uma grande capacidade e dinâmica por parte dos fabricantes, que necessitam de contornar a contínua escassez de alguns componentes, produtos e materiais, de modo a assegurar resposta a este novo paradigma”. Excluindo este tipo de equipamentos, a escolha de Hugo Velho vai para os sistemas a biomassa, em virtude da sua acessibilidade.

Invertendo a ordem de preferência, para Nuno Sequeira, CEO da Solzaima, é no uso de madeira e/ou pellets que está a resposta para deixar de importar gás ou gasóleo para aquecimento das casas. Os argumentos a favor são vários, desde a produção local e o facto de que uma gestão adequada da floresta “permitiria gerar anualmente resíduo necessário para aquecer todas as habitações em Portugal”, à natureza “muito pouco volátil” do preço da madeira e dos pellets comparativamente a outras fontes de energia. Para este gestor, as bombas de calor aparecem em segundo lugar, mas, alerta, “apenas quando combinadas com solar fotovoltaico, pois, de outra forma, estaremos a depender de forma exagerada da energia eléctrica”.

Luís Monteiro, responsável pelo desenvolvimento de novas soluções para climatização e águas quentes da Bosch Termotecnologia, recorre a estudos feitos pela marca para justificar a sua resposta, garantindo que “uma abordagem multitecnológica é a melhor forma de acelerar o processo de transição energética e assegurar o atingimento das metas de redução de emissões de CO2”. Conforme os objectivos, a resposta varia: focando apenas a redução de emissões, a solução “preferencial” é a combinação solar térmico (AQS) e ar condicionado (espaço), seguindo-se as bombas de calor para AQS; todavia, tendo em conta factores como “a facilidade de instalação e o preço de aquisição”, são os esquentadores a gás renovável (hidrogénio ou biogás) que, para o especialista, “poderão desempenhar um papel ainda mais importante, porque, apesar de menos eficientes, são globalmente mais económicos e chegarão a mais pessoas”.

Pensando no curto/médio prazo, Vasco Silva, director da Giacomini Portugal, defende que as opções com maior potencial estão “nos sistemas com energia solar fotovoltaica, associados à produção de hidrogénio, e na alimentação eléctrica às bombas de calor”. Já pensando no longo prazo, o gestor acredita que o futuro do aquecimento passa pelo “hidrogénio, através de caldeiras com um ciclo de emissões zero”.

Solar térmico: a solução “enjeitada” em Portugal

Pouco depois do anúncio do REPowerEU, a indústria europeia de solar térmico foi das primeiras a reagir, assumindo-se como uma “solução made in EU” para a independência energética. O sector diz ser capaz de gerar 25 TWh de calor directo nos próximos dois anos, desde que sejam implementadas “medidas fortes” nesse sentido. O resultado seria equivalente a uma poupança de três mil milhões de m³ de gás por ano, estima a mesma entidade, mas pode ainda ir mais longe. Em dez anos, o contributo desta tecnologia pode chegar aos 500 TWh, garantiu o presidente da Solar Heat Europe.

Em Portugal, o solar térmico é essencialmente usado para AQS, tendo vindo a perder, nos últimos anos, quota de mercado para outras soluções, em particular as bombas de calor. Em 2021, o mercado cresceu 22 % impulsionado pela nova construção e a vaga de remodelações do período pandémico. Apesar dos números positivos e de esta ser uma tecnologia madura, Victor Júlio, director da Baxi, lamenta que o solar térmico não goze do mesmo hype que existe à volta de outras soluções – “as vantagens são pouco comunicadas (…) é um erro pensarmos que o mercado sabe que o solar térmico é a melhor opção”. Para o gestor, promover a tecnologia poderia ser ainda mais importante no momento actual, e explica porquê: “Numa situação em que eu tenho a incerteza do meu fornecimento de energia, o solar térmico é, sem nenhuma dúvida, a melhor solução numa habitação, porque não vamos abdicar de tomar banho e, se possível, [queremos fazê-lo] com água não fria”.

O solar térmico não tem de ser concorrente das bombas de calor e, para Joaquim Meneses, da Hiperclima, a solução “perfeita” passa mesmo por juntar os dois. “Ficamos com uma componente mais vantajosa em termos de independência.” Esta é uma possibilidade que, diz, tem de ser mais explorada em Portugal, até “porque somos um país com muito sol e seria um erro não o aproveitarmos”.

Hidrogénio: quais as expectativas para o aquecimento?

Muito se fala sobre o potencial do hidrogénio (verde) para a descarbonização, e, no caso do aquecimento, as respostas das empresas mostram que a expectativa, embora grande, é para o futuro. “Tendo em conta as estimativas de preço, disponibilidade e outros benefícios associados ao hidrogénio, e considerando ainda que o esquentador a gás é, hoje, a solução mais económica e preferida dos portugueses para AQS, temos expectativas de que possa ser, no futuro, um vector energético importante no aquecimento”, considera Luís Monteiro. No entanto, “temos um longo caminho para chegar ao hidrogénio” e “muitos problemas para resolver” para que tal seja possível, diz Nuno Sequeira, alertando para a necessidade de “renovar todos os queimadores que existem nas casas, uma vez que actuais esquentadores e caldeiras de gás não irão funcionar a hidrogénio e terão de ser substituídos”.

“É um processo para o futuro, que não será tão breve como se gostaria”, diz Hugo Velho, dando a entender que, embora a Daikin não coloque de parte a solução, a sua aposta é nas bombas de calor – “Acreditamos que, mesmo em 2050, com todas as infraestruturas preparadas para a distribuição deste combustível, as bombas de calor ar-água serão energeticamente mais eficientes e com um menor custo efectivo, por agregado familiar, do que a solução de caldeira a hidrogénio”.

O hidrogénio vai ter a sua quota de mercado, antevê Ricardo Ribeiro, especialista em soluções de aquecimento renovável. Apesar de estar ainda em desenvolvimento e de parecer uma “tecnologia futurista”, hoje, “já é possível reduzir significativamente as emissões de CO2 adicionando 20 % de hidrogénio ao gás natural”, lembra. E se há fabricante para a qual esta não é uma tecnologia de futuro, essa é a Giacomini, que dispõe já de combustores a hidrogénio para aquecimento de água a baixa temperatura. “São ainda equipamentos caros”, admite Vasco Silva, “mas, com a previsível produção e distribuição de hidrogénio a médio prazo em Portugal, poderá ser possível massificar a implementação de caldeiras a hidrogénio e consequentemente baixar os custos de produção”. A solução, acredita o técnico, poderá contribuir “muito significativamente” para uma “mudança de paradigma e para o cumprimento das metas a que nos propusemos”.

O mesmo entusiasmo é partilhado pela Vaillant, que dispõe já de produtos certificados para funcionamento com um blend de 20 % de hidrogénio, o qual, até 2025, será de 100 %. As expectativas, afirma Carlos Ribeiro, são “muito altas”, em particular, porque “Portugal tem todas as condições para desenvolver soluções para a produção de hidrogénio verde e, dessa forma, ser muito mais autónomo do ponto energético e geopolítico”.

Fotovoltaico: a combinação cada vez mais provável

Para a maioria das empresas inquiridas, o potencial do hidrogénio está ainda por desenvolver, mas há outra tecnologia que só há relativamente pouco tempo começou a ser falada como uma solução a ter em conta quando se fala de aquecimento: o solar fotovoltaico. E isto deve-se à crescente electrificação. Ao permitir a produção eléctrica descentralizada para autoconsumo, o fotovoltaico apresenta-se como um complemento a equipamentos do tipo bombas de calor e ar condicionado e até à biomassa. A combinação apresenta-se como interessante, no entanto, alerta Carlos Ribeiro, há riscos, uma vez que leva a que se opte cada vez mais por equipamentos eléctricos que não são totalmente alimentados pelo autoconsumo, o que, por sua vez, gera cada vez mais consumos.

Apesar disso, é unânime que o fotovoltaico tem um papel a desempenhar na descarbonização dos edifícios e também no que se refere a uma maior segurança energética. “Esta ‘luta’ pela energia é percepcionada pelo cidadão que, à sua escala, tenderá a aplicar uma mímica de redução na dependência energética através de sistemas solares fotovoltaicos em regime de autoconsumo”, confirma Alexandre Cruz, director de serviços de Energia na empresa Tecneira, levantando, porém, a dúvida sobre os efeitos que a inflação possa vir a ter no futuro. “

Iremos assistir a um fenómeno paradoxal: uma economia sedenta em reduzir os custos com a electricidade para potenciar a sua já débil competitividade e falta de liquidez para investir em soluções de produção distribuída de electricidade em regime de autoconsumo”, antecipa. A solução, considera, poderá passar pelas comunidades de energia renovável (CER) – “serão uma peça-chave que poderá responder de forma imediata a um desígnio nacional, permitindo, em muitos casos sem investimento por parte dos participantes, aceder a custos de energia eléctrica competitivos.”

Aplicando o fotovoltaico à escala local, as CER têm efectivamente ganhado mais interesse no momento actual e são inúmeros os projectos que se anunciam por todo o país. “A procura por soluções que possibilitem uma maior autonomia energética e eficiência energética, com o intuito de assegurar a acessibilidade a serviços energéticos a preços baixos, fez com que o interesse pelo desenvolvimento de CER se intensificasse, uma vez que estas possibilitam acelerar a transição energética assente na descarbonização, permitindo que os seus membros usufruam de energia verde produzida localmente e a preços baixos, promovendo um aumento da competitividade das empresas e mais rendimento disponível nas famílias portuguesas”, explica Andreia Carreiro, Innovation & Energy advisor da Cleanwatts.

Porém, há ainda desafios por resolver, nomeadamente aspectos administrativos, mas também no que se refere a modelos de negócio, financiamento, questões técnicas como a digitalização do sistema energético, a interoperabilidade entre os sistemas ou a concretização de partilhas dinâmicas e em tempo real nas comunidades, entre outros, elenca a responsável.