Artigo publicado originalmente na edição de Março/Abril de 2021 da Edifícios e Energia

Os roteiros personalizados e os repositórios digitais têm potencial para “mudar o jogo” no sector da reabilitação de edifícios e ajudar a duplicar o actual ritmo de intervenções no parque edificado europeu para os valores propostos pela Renovation Wave. Portugal foi um dos três países com pilotos realizados no âmbito do iBRoad, o projecto europeu que criou uma metodologia adaptável para promover a reabilitação energética e cujos resultados fazem parte dos instrumentos previstos na estratégia nacional para a renovação dos edifícios.

O ponto de partida é simples: todos os edifícios são diferentes. Nos seus usos, nos seus materiais, na sua estrutura e nos seus ocupantes. É tendo em conta a especificidade de cada edifício que deve ser desenhado um plano detalhado para a sua reabilitação, com vista à eficiência energética “e financeira também”. As reabilitações “estão sempre a acontecer”, mesmo quando não lhes são dadas este nome. Chamam-lhes “melhorias”, muitas vezes. “Acontecem passo-a-passo, mas isso não significa que sejam bem feitas e conduzam a uma boa performance energética e a uma boa qualidade do ar interior” (QAI). A reabilitação dos edifícios carece de um roteiro, ou um roadmap, na terminologia mais internacional.

“Tem de existir sempre uma base regulatória”, sublinha Alexander Deliyannis, coordenador, a partir da consultora grega Sympraxis, do iBRoad – Individual Building (Renovation) Roadmaps, o projecto europeu que se propôs a desenvolver um modelo replicável para o Passaporte de Reabilitação de Edifícios, documento que compreende um roadmap e um logbook – ou repositório digital – duas ferramentas orientadas para a reabilitação de edifícios a longo prazo, passo-a-passo. Não há uma receita única e estas ferramentas devem ser adaptadas aos diferentes edifícios, aos diferentes países, cidades e proprietários.

O iBRoad teve início em Maio de 2017 e terminou no último dia de 2020, tendo contado com um orçamento superior a 1,9 milhões de euros, proveniente do programa europeu Horizonte 2020. Ao longo dos últimos três anos e meio, desenvolveu “mais de 60 roadmaps” – dos quais 20 em Portugal – e uniu 12 parceiros de nove países: Grécia, Roménia, Suécia, Polónia, Bélgica, Portugal, Bulgária, Áustria e Alemanha. Portugal, Polónia e Bulgária foram palco de testes piloto para aplicação das metodologias desenvolvidas.

A ideia de desenvolver roteiros e diários de bordo para orientar e facilitar a renovação energética de edifícios é, todavia, anterior ao projecto. “Não foi o iBRoad que teve a ideia”, explica Alexander Deliyannis, gestor de projectos relacionados com sustentabilidade. Quiseram “olhar para o que existia e ver o que valia a pena replicar para adaptar em cada país”. A equipa que lidera inspirou-se em países que já começavam a aplicar os conceitos, como é o caso da região belga da Flandres, que, em 2018, deu a todos os edifícios o seu próprio passaporte para a reabilitação, agregando toda a informação disponível sobre os edifícios – como, por exemplo, certificados energéticos –, providenciando dados úteis e recomendações para intervenções.

O que é o Passaporte de Reabilitação de Edifícios?

Alexander Deliyannis @ PowerUP!

É um documento que conjuga o repositório digital e o roteiro de reabilitação. O primeiro é uma ferramenta que permite agregar toda a informação relativa às várias transformações e intervenções realizadas num determinado edifício. A informação deste repositório pode ser centralizada e partilhada com o Estado ou com terceiros, facto que pode revelar-se especialmente útil “se se vender a casa, [já que] tem registo de tudo o que foi feito”. O segundo é um documento orientador, personalizado e detalhado, que traça o plano de reabilitação do edifício ao longo de um horizonte temporal definido – até 15 ou 20 anos. O plano de acção para cada edifício deve resultar de uma auditoria energética realizada no local. É o roadmap – o roteiro – que “diz como deve ser feita, a melhor ordem e o que devemos antever”, explica Alexander Deliyannis em entrevista à Edifícios e Energia.

“Não podemos reabilitar casas como reparamos um carro”, diz o coordenador do projecto europeu. “Um carro com 25 anos não é legal para circular, por causa das emissões”. Por sua vez, “na Europa, os edifícios são velhos”, o que “não é necessariamente mau, resistiram ao teste do tempo”. É a heterogeneidade do edificado a justificar a necessidade de adaptar e personalizar o roteiro de reabilitação de acordo com as necessidades de cada edifício, de cada família, de cada empresa. “Temos de entender que precisamos de soluções personalizadas, mas com método”, afirma. “O que pode ser melhorado é diferente de país para país”, mas é também “diferente para cada edifício e para cada proprietário”. “Cada família tem o seu próprio plano” e isso é algo que pode ter consequências no plano que é traçado para a reabilitação energética, considera. Não há uma receita única e esse foi o foco do iBRoad – o desenvolvimento de uma metodologia para a criação de um Passaporte de Reabilitação de Edifícios que permita a replicação e personalização.

O trabalho desenvolvido no âmbito do projecto focou-se no sector residencial, mas os resultados podem ser aplicados “a todo o tipo de edifícios”, garante. Os parceiros do iBRoad – consultoras, agências nacionais de energia e instituições de ensino superior – podem não ter sido pioneiros na criação dos conceitos do roteiro e do repositório, mas foram certamente precursores. “Quando acabámos, havia três ou quatro vezes mais iniciativas do género”, diz Alexander Deliyannis.

“Não podemos reabilitar casas como reparamos um carro”, diz o coordenador do projecto europeu. “Um carro com 25 anos não é legal para circular, por causa das emissões”. Por sua vez, “na Europa, os edifícios são velhos”, o que “não é necessariamente mau, resistiram ao teste do tempo”. É a heterogeneidade do edificado a justificar a necessidade de adaptar e personalizar o roteiro de reabilitação de acordo com as necessidades de cada edifício, de cada família, de cada empresa.

Ferramentas para concretizar a ambição europeia

Se antes eram poucos os países a promover a adopção de um passaporte, nos últimos anos o cenário tem mudado pela Europa fora. Em Portugal, também houve desenvolvimentos na matéria. A recém aprovada Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE) prevê, enquadrada na actualização do Sistema de Certificação Energética dos Edifícios (SCE), a “criação do passaporte de renovação de edifícios, enquanto instrumento facultativo, que complemente o certificado energético”. O documento estratégico nacional aprovado em Janeiro prevê, também, a “criação do Livro do Edifício em suporte digital, para funcionar como arquivo actualizado de toda a informação relativa ao edifício e às renovações feitas ao longo do tempo”.

“Os conceitos estão a amadurecer na União Europeia e não é surpreendente que sejam mencionados na Renovation Wave e no Pacto Ecológico Europeu”, o pacto verde da Comissão Europeia apresentado em 2019 e que pretende levar a Europa a conquistar o título de primeiro continente a atingir a neutralidade carbónica em 2050.

O repositório digital e o roteiro para a reabilitação podem revelar-se duas ferramentas complementares na promoção da renovação do parque edificado europeu. “O roadmap e o logbook juntam-se”, diz Alexander Deliyannis.

A Renovation Wave traça uma meta indicativa e ambiciosa: reabilitar o parque edificado europeu até 2050. Para isso, o plano da Comissão Europeia prevê ser necessário duplicar o ritmo de reabilitação energética dos edifícios. Actualmente, segundo a instituição europeia, menos de 1 % dos edifícios é alvo deste tipo de intervenção todos os anos.

Os resultados finais do iBRoad, apresentados numa conferência digital, em Novembro de 2020, sublinham a importância “determinante” dos roteiros e dos repositórios enquanto ferramentas para alavancar os níveis de reabilitação energética no parque edificado europeu, sobretudo ao nível dos objectivos propostos pela Renovation Wave.

“Financiamento personalizado” para alavancar o sector

“Cada euro que vai para a reabilitação traduz-se em dois/três euros na economia”, afirma o coordenador do projecto. A senda europeia para a reabilitação do edificado não prescinde de avultado investimento. Para descarbonizar o edificado europeu e cumprir com as metas energéticas e climáticas, as contas da Comissão Europeia apontam para a necessidade de mobilizar investimentos anuais, públicos e privados, de cerca de 325 mil milhões de euros.

Alexander Deliyannis considera que, para alavancar o sector da reabilitação energética, é necessário “financiamento personalizado”. Neste sentido, espera “que as instituições financeiras e os bancos entendam isto e apoiem este tipo de reabilitações”, sobretudo no momento em que vivemos, numa altura de crise pandémica que mostrou “mais do que nunca” como “as pessoas querem melhorar as suas casas”. O coordenador do iBRoad sugere um caminho: o ritmo da reabilitação pode aumentar se os bancos oferecerem vantagens no financiamento a projectos de renovação que tenham por base um roadmap.

Através da adopção de roteiros de reabilitação energética passo-a-passo, o objectivo dos passaportes iBRoad é o de alcançar, na maioria dos edifícios, a classificação energética A+, com o último passo dos planos de reabilitação a ocorrer entre 2025 e 2035.

Comunicar vantagens pode conduzir a mais reabilitação

A execução do projecto teve como resultado a criação de um manual para Peritos Qualificados (PQ), os técnicos responsáveis pela avaliação energética dos edifícios e a respectiva emissão do Certificado Energético, disponibilizando orientações e conselhos para a criação de um roteiro de reabilitação individual. Adicionalmente, foram criadas versões nacionais do guia iBRoad para Portugal, Bulgária, Polónia, Alemanha e para a região belga da Flandres.

Rui Fragoso, responsável da direcção de projectos da ADENE e ponto de contacto da agência para o iBRoad.

Por cá, foi a ADENE – Agência para a Energia a coordenar a participação no projecto europeu, com uma dotação orçamental de 116,9 mil euros. A agência portuguesa teve à sua responsabilidade o “desenvolvimento da abordagem e estrutura do repositório digital” e a “abordagem prática dos passaportes de renovação”, explica à Edifícios e Energia Rui Fragoso, responsável da direcção de projectos da ADENE e ponto de contacto da agência para o iBRoad.

Durante o piloto, entre os meses de Março e Maio de 2019, a ADENE conduziu a realização de 20 passaportes de reabilitação de edifícios em Portugal, com o apoio de dez PQ. Após a conclusão dos passaportes, que incluíram o roteiro para a reabilitação dos edifícios, foi realizado um inquérito aos 20 proprietários dos edifícios, a maioria construída antes dos anos 70 e a partir dos anos 90 do século XX. As respostas indicaram que foi “particularmente valorizada” a informação disponibilizada pelo roteiro relativamente à “eficiência económica” e aos “benefícios energéticos” previstos pelo plano de reabilitação. Segundo Rui Fragoso, destacou-se “a clarividência do roadmap ao longo dos anos para a implementação das medidas”.

O responsável da ADENE considera que tanto o roteiro, como o repositório digital, em complemento com “outras acções”, podem ajudar a “estimular os consumidores na implementação de renovações profundas nos seus edifícios”. A partir das linhas orientadoras de documentos como o ELPRE, “será de esperar” uma implementação “progressiva” para os “próximos anos”, diz.

Relativamente às medidas que podem estimular o aumento do ritmo de reabilitação energética dos edifícios, Rui Fragoso aponta a “receita”: poderá passar, diz, “por medidas financeiras, fiscais, legislativas” e outras, mas, sublinha, “o importante é que existe um fio condutor a nível nacional que permitirá apoiar a acção governativa para as próximas três décadas”.

Através da adopção de roteiros de reabilitação energética passo-a-passo, o objectivo dos passaportes iBRoad é o de alcançar, na maioria dos edifícios, a classificação energética A+, com o último passo dos planos de reabilitação a ocorrer entre 2025 e 2035. O número de passos a percorrer varia entre dois e cinco, sendo especificado, a título de exemplo, que, num específico ano, deve ocorrer a substituição de janelas. O relatório final do iBRoad está a ser preparado e, apesar de o projecto já ter terminado oficialmente, Alexander Deliyannis deixa a sugestão: “cidades e países interessados podem contactar-nos para uma demonstração”.