Artigo publicado originalmente na edição de Julho/Agosto de 2021 da Edifícios e Energia

Empreendedorismo, criatividade e inovação são os três “ingredientes” que, nos últimos anos, alimentam a nova vida do Beato, em Lisboa. A estes, junta-se agora a sustentabilidade ambiental, através de um projecto que, nos próximos três anos, vai transformar o Hub Criativo do Beato num laboratório vivo. Tendo como pano de fundo um conjunto de edifícios onde a renovação energética foi prioridade, há nove ideias para implementar, entre elas uma comunidade de energia renovável e uma horta urbana de 700 m² numa cobertura.

Na antiga Manutenção Militar, em Lisboa, o passado e o futuro parecem ter encontro marcado. A ala Sul deste espaço acolhe, hoje, o Hub Criativo do Beato (HCB), num conjunto de 18 edifícios onde está ainda presente a memória dos tempos em que as fábricas e os militares marcavam o ritmo desta zona da cidade. Por estes dias, são as obras de reabilitação e construção que dominam o espaço, mas a expectativa é a de que nasça ali, muito em breve, um dos “maiores pólos de inovação e empreendedorismo da Europa”. Mas este não é o único plano para o futuro do HCB e pretende-se que este possa ser também um lugar de experimentação no qual a energia está em destaque. A proposta toma forma com o projecto HCB Living Lab (LL), uma iniciativa promovida pela Startup Lisboa, em parceria com a câmara municipal (CML), e cuja coordenação técnica está a cargo da agência de energia e ambiente Lisboa E-Nova. Tirando partido das características do local e de regras diferentes das que se aplicam ao espaço público, este laboratório vivo vai experimentar soluções tecnológicas que respondem aos desafios de sustentabilidade das cidades, alocadas a nove operações, incluindo a criação de uma comunidade de energia renovável (CER).

O projecto foi apresentado em finais de Maio, por ocasião da 10ª Semana de Empreendedorismo de Lisboa, e conta com um consórcio de parceiros – alguns dos quais residentes do HCB –, no qual se incluem Carris, Circular, DST Solar, Innovation Point, Mota-Engil Renewing, Praça, Prio, Schréder, The Browers Company e Watt-IS. Num investimento de cerca de dois milhões de euros, co-financiados em 40 % pelos EEA Grants, as nove operações integram-se, para além da energia, nas áreas de edifícios, mobilidade, economia circular e ambiente.

Um projecto inevitável

A implementação de algumas das medidas que fazem agora parte do laboratório vivo é uma ideia que fermenta desde a origem do HCB, conta José Mota Leal, responsável da Startup Lisboa pela gestão do projecto. Criado em 2016, o HCB surgiu numa tentativa de acelerar a revitalização daquela zona da capital, inserido numa estratégia mais alargada que colocava Lisboa enquanto cidade empreendedora e criativa. O projecto foi, desde então, crescendo com base em quatro eixos que servem também de “critério” à escolha dos residentes: empreendedorismo; inovação e conhecimento; scale-ups e global companies; e indústrias criativas. “Tudo isto tendo como pressupostos [o facto de ser] uma comunidade aberta, o salvaguardar do património industrial e militar e a promoção da sustentabilidade ambiental”, refere. O apoio dos EEA Grants veio facilitar e acelerar a execução das operações, mas, acredita o gestor, o living lab iria acabar por acontecer mesmo se este não existisse – uma ideia que foi, aliás, reforçada pelo vereador da CML, Miguel Gaspar, aquando da apresentação pública do HCB LL.

Não obstante, a oportunidade para o financiamento surgiu e a iniciativa chega no momento em que as obras, ainda que atrasadas pela pandemia de Covid-19, avançam a olhos vistos na grande parte dos edifícios. “Até ao final do ano” alguns deverão já receber residentes, antecipa Mota Leal, explicando como se processa a admissão dos residentes: para além de se integrarem nos eixos do HCB, a decisão depende também da proposta conceptual que cada um apresente para o uso do edifício em causa, garantindo, assim, a preservação da memória do local. Neste momento, refere, o HCB tem cerca de uma dezena de parceiros, a quem cabem os custos da renovação dos edifícios e que recebem, em contrapartida, a possibilidade de usar o espaço até à recuperação do investimento. Por sua vez, nos 32 mil m² do Hub, toda a infraestrutura base e requalificação do espaço exterior ficaram a cargo da CML.

As intervenções no edificado não estão incluídas no projecto HCB LL, mas dão chão a algumas das operações previstas. Começando pela eficiência energética nos edifícios, que devem “cumprir requisitos ambientais”, sendo que naqueles cujas intervenções avançaram depois da entrada em vigor da nova legislação para os edifícios, em Dezembro passado, os requisitos nZEB “foram tidos em conta”, assim como o Smart Readiness Indicator (SRI), previsto na directiva europeia para o desempenho energético dos edifícios, garante Maria João Rodrigues, responsável da Lisboa E-Nova. A especialista explica ainda que o sistema energético do HCB está orientado para a electrificação dos consumos, também no que se refere à climatização, o que torna o tema do autoconsumo ainda mais pertinente para o local. A pensar nisso, mas fora do âmbito do LL, a instalação de painéis solares fotovoltaicos era algo que estava já previsto “na generalidade dos edifícios”.

© Carla Pires

CER, um desafio até para os mais criativos

Com o LL, a energia passa a ser uma área a experimentar no Beato, sendo a CER a operação mais emblemática neste pacote, até porque se trata de um modelo para o qual não existe ainda referência em Portugal. O que se pretende, refere Maria João Rodrigues, é testar como a CER pode funcionar numa lógica de “mercado interno que optimize benefícios para todos e cujas regras de partilha possam operacionalmente ser complexas e dinâmicas, embora formalmente se adoptem as regras simplificadas previstas na legislação”. O facto de o número de participantes ser pequeno e de haver entre estes uma relação de confiança permitirá experimentar lógicas de “mercado”, recorrendo, por exemplo, ao uso de blockchain como parte activa da CER.

A definição do modelo está agora a começar e, por esse motivo, todas estas questões estão ainda em aberto, até porque “ainda persistem muitas dúvidas”, confessa a responsável. “A legislação e regulamentação associada são muito recentes e ninguém sabe bem como se concretizam”, justifica, apontando a “falta de experiência” na sua aplicação. À decisão sobre se se tratará de uma CER ou de autoconsumo colectivo, Maria João Rodrigues acrescenta dificuldades que podem surgir no entendimento dos parceiros sobre o modelo, na definição de modelo de mercado interno e dos contratos e até ao nível técnico, por se tratar de três “sub-redes públicas” e não de uma única rede privada. Face à complexidade da medida, há a ambição de “envolver, desde cedo, a ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos e a DGEG – Direcção Geral de Energia e Geologia” e, com isto, “apoiar o desenvolvimento de políticas públicas”.

O primeiro ano será “crítico” para a definição do modelo, mas, depois disso, há a certeza de que o HCB terá edifícios consumidores e produtores-consumidores, num modelo que assentará na produção local de energia renovável e soluções de armazenamento estático – ainda que, numa ambição “extra” ao projecto, haja também a vontade de simular armazenamento dinâmico. Nesta acção, estão directamente envolvidos quatro parceiros: o armazenamento ficará a cargo da Mota-Engil Renewing; a DST Solar assumirá a operacionalização; e a Watt-IS e a Innovation Point serão responsáveis pela “inteligência” do sistema.

© Carla Pires

A CER vai dispor de uma plataforma com capacidade de gestão de procura, previsão de produção e consumo de energia. Dado que uma das intenções deste living lab é trabalhar com a “camada de inteligência”, esta irá, por sua vez, comunicar os KPI globais da CER com uma outra plataforma transversal a todo o projecto, a HCB i-Management. As restantes operações vão ser fontes de dados para a ferramenta, como é o caso do sistema de iluminação pública do HCB. Numa iniciativa liderada pela Schréder, os postes de iluminação do local, para além de eficientes (LED), vão ser dotados de diferentes valências, desde a sensorização ambiental à possibilidade de carregar bicicletas ou trotinetas eléctricas. Dados provenientes de sistemas de som e CCTV, uma estação meteorológica de referência e sensores de radiação instalados nas coberturas de edifícios seleccionados vão alimentar esta plataforma e o novo Laboratório de Dados HCB. É com base nisto que o projecto arranca para duas outras operações: lançar desafios à comunidade científica (nacional, mas não só) para encontrar soluções em áreas prioritárias para a iniciativa, e, incentivando o empreendedorismo, usar estes dados como matéria-prima para um Programa de Aceleração Clean Tech que será conduzido pela Startup Lisboa.

Energia, alimentação e comunidade encontram-se no rooftop

Na cobertura do edifício da Factory, que se prepara para acolher até 800 postos de trabalho de empresas tecnológicas e start-ups, os painéis solares vão ter companhia: uma horta urbana com 700 m². Segundo a equipa do projecto, são vários os objectivos que se pretendem com esta acção, incluindo a avaliação do impacto deste tipo de soluções no desempenho ambiental de edifícios e a investigação e demonstração de viabilidade de produção de lúpulo (para a cerveja artesanal) e de aromáticas, de forma a aproveitar as cadeias curtas e de proximidade. Esta vai ser também uma oportunidade para adoptar o modelo de hortas urbanas da CML, o que significa que o espaço vai ser aberto ao público, prometendo um dos “melhores rooftops” da cidade, graceja Mota Leal.

O convite à comunidade exterior não se fica pela horta, já que, reforça o porta-voz da Startup Lisboa, todo o Hub “é um espaço aberto”. Só há, porém, uma regra: carros não entram e, no HCB, só se pode andar a pé, de bicicleta ou trotineta. Enquanto numa das entradas está a ser construído um silo de estacionamento automóvel, o living lab promove, indirectamente, o uso dos transportes públicos: numa iniciativa entre a Carris e a Prio, uma das carreiras de autocarro que serve o espaço vai funcionar a biodiesel produzido a partir de óleos alimentares recolhidos no HCB e na envolvente.

Da mobilidade à economia circular, o ciclo de operações do HCB fecha-se com uma acção no sistema alimentar: a criação de uma ferramenta de materiais associados ao sistema de restauração para avaliar as estratégias de cadeia curta com diferentes âmbitos territoriais e de fecho de ciclo. Incluídos nesta operação estão alguns dos usos dos espaços – caso dos futuros Repair Café e food court, cuja proposta, a cargo de A Praça, assenta no conceito de sustentabilidade e terá uma oferta que vai “desde o mercado [tradicional] ao fine dining”, antecipa Mota Leal.

© Carla Pires

“Tudo em aberto”

No âmbito da candidatura aos EEA Grants, o projecto do HCB LL tem a duração de três anos, mas, para a equipa, não há um horizonte temporal fechado. “A intenção é a de continuar pós-candidatura, criando uma comunidade de laboratório vivo com todos os parceiros”, explicam. Para as empresas, a inovação que se pretende gerar funciona como aliciante – “Os parceiros vêem uma capacidade demonstrativa neste projecto e o know-how e inovação que se ganham [no seu desenvolvimento] ficam com cada um deles”, explica Mota Leal. Posto isso, cabe-lhes a missão de aplicar este conhecimento e inovação noutros locais, replicando as lições aprendidas.

Também no que se refere aos participantes, a iniciativa não está fechada e a abertura não se cinge apenas a empresas. Conforme sublinha Mota Leal, um dos pressupostos do HCB é o de ser “uma comunidade aberta” e, por isso, estão a ser pensadas formas de envolver outros actores, com especial atenção para quem vive nas proximidades. A horta urbana é já uma primeira oportunidade para isso e, no caso da CER, Maria João Rodrigues sugere, por exemplo, a hipótese de creditar os excedentes em comunidades mais desfavoráveis, desde que “havendo possibilidade técnica e legal” para isso. “Está tudo em aberto”, concluem os dois responsáveis, sendo, no entanto, certo que o projecto ambiciona envolver a indústria, a comunidade científica e as comunidades locais, numa “acção concertada” entre os sectores públicos e privados, com vista a uma transição energética justa.