A função dos materiais para a eficiência energética nos edifícios é incontornável. Se quisermos falar em edifícios carbono zero, as características e a constituição dos produtos, os processos construtivos e o ciclo de vida também determinam o balanço energético e ambiental dos edifícios. Esta é uma nova dimensão da sustentabilidade que está em cima da mesa na revisão da Directiva Europeia para o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD). Com a ajuda de alguns investigadores, ficámos a saber que já é possível calcular a energia incorporada e a pegada ambiental dos produtos e dos processos de construção. Falta o resto!
Quando falamos em térmica e conforto dentro dos edifícios, a tentação é de nos perdermos na tecnologia e nos sistemas. O foco de todas as últimas estratégias tem estado no desempenho energético do edifício aquando da sua utilização. A sustentabilidade do edifício tem estado maioritariamente relacionada com o dimensionamento dos sistemas e a maneira de a “resolver” com a colocação de soluções e equipamentos de energias renováveis. Cuidar da envolvente e dos aspectos construtivos é um factor que é tido em conta, nomeadamente pela existência de requisitos na aplicação de soluções construtivas, e temos também feito um caminho regulamentar neste sentido. Mas será suficiente? Chegados aqui, num contexto de regras muito apertadas ao nível do desempenho e da eficiência energética, importa saber por onde podemos caminhar de forma a alargar a sustentabilidade de todos estes processos.

Cuidar do ambiente e minimizar as necessidades energéticas dos edifícios estiveram na base de todos estes temas e tudo indica que a Comissão Europeia não quer esquecer este desígnio. A revisão da EPBD já aponta novas abordagens, como a pegada de carbono e a energia incorporada nos edifícios. Uma excelente notícia numa altura em que se ambicionam e se definem caminhos para os edifícios carbono zero. E é aqui que os materiais, os processos construtivos e todo o ciclo de vida do edifício vão começar a ganhar o protagonismo que merecem pela necessidade não só de se avançar, mas também de promover as dimensões sustentável e inovadora que estes temas acrescentam ao projecto e à indústria.

Já sabemos quase tudo. Já sabemos como calcular estas variáveis e já temos ferramentas para o fazer. Faltam-nos as metodologias e as orientações regulamentares, porque tudo o resto já existe. Incluir a incorporação do carbono e a energia na construção, nos materiais, no ciclo de vida de todos processos, nos componentes e na demolição e no balanço energético e ambiental do edifício vai ser o novo paradigma da eficiência energética e é importante olhar para esta caminhada que já começou. Até porque, quando falamos em carbono zero, pode ser redutor olhar apenas para uma parte da equação, neste caso, apenas para o desempenho energético dos edifícios, no âmbito de qualquer sistema de certificação energética.

Este arranque já é uma realidade do lado da investigação e da indústria. Muitas empresas têm aderido ao Sistema Nacional de Registo de Declarações Ambientais de Produto (DAP) e já existem 25 DAP com o retrato da produção de materiais em Portugal. Um processo voluntário que caracteriza o impacte ambiental desses mesmos produtos. Com estas informações e vários softwares já disponíveis, os projectistas estão aptos a trabalhar nesta análise e esta é uma das boas notícias: a indústria está organizada e à espera do passo seguinte. Este passa também pela disseminação do conhecimento, das informações e das ferramentas para que as contas e os cálculos possam ser feitos no mercado e no terreno. Para esta análise, o contributo da academia tem sido imprescindível. Já existem o conhecimento e as ferramentas para calcular a energia que os materiais utilizados trazem no seu percurso, desde a extracção das suas matérias-primas, ao fabrico, ao transporte, à reciclagem, à demolição e por aí fora. Sabemos que a parcela de energia incorporada nos materiais é menos relevante quando comparada com a energia operacional. Sucede que, à medida que os edifícios se tornam mais eficientes em termos energéticos, a parcela de energia incorporada vai aumentando num balanço que se quer rigoroso.

Uma realidade que parece ser inevitável e até a revisão da EPBD vai nesse sentido, mas há ainda um longo caminho a percorrer no que se refere às metodologias e à sua integração no sistema de certificação energética de qualquer país europeu. Sim, porque, até agora, tudo é possível, mas de uma forma voluntária. Quando alinhados com os sistemas de certificação de sustentabilidade como o LEED (Leadership in Energy and Environmental Design) ou o BREEAM (Building Research Establishment Environmental Assessment Method), os projectistas avançam para estes cálculos e a diferenciação está, depois, no aumento da pontuação do edifício. Uma “boa motivação”, defendem os especialistas.

Sabemos que a parcela de energia incorporada nos materiais é menos relevante quando comparada com a energia operacional. Sucede que, à medida que os edifícios se tornam mais eficientes em termos energéticos, a parcela de energia incorporada vai aumentando num balanço que se quer rigoroso.

“Os honorários dos projectistas não ajudam. Tipicamente, o projecto não é bem pago e não são valorizadas as especialidades. Com a excepção dos edifícios de grande dimensão, há um desinvestimento muito grande. Há duas realidades, [sendo que] o nosso país está nos quase 90 % de moradias ou habitações unifamiliares. Se falharmos nesse segmento, estamos a falhar no geral”, recorda Nuno Simões, engenheiro civil de formação e investigador do ITeCons – Instituto de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico para a Construção, Energia, Ambiente e Sustentabilidade, “uma instituição de utilidade pública, que funciona como interface dinâmica do conhecimento entre a comunidade científica e a indústria, prestando serviços de investigação aplicada, ensaios, consultoria e formação nos domínios da construção, energia, ambiente e sustentabilidade”, lê-se no sítio na internet da entidade. “Ainda temos zonas do país sem saneamento básico, sem abastecimento de água, o que é dramático”, alerta, por sua vez, António Tadeu, presidente da direcção do mesmo instituto.

Começar pelo princípio

Este retrato do parque edificado deveria falar por si só quando pensamos em estratégias para a energia. “Já vamos tarde. Basta olhar para o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português e já estamos a falhar. Veja-se a percentagem do investimento feito para o Programa Edifícios Mais Sustentáveis para a habitação. Este Programa esteve sobretudo orientado para a colocação de painéis fotovoltaicos e, em termos de envolvente, esteve focado apenas nas janelas, porque a indústria se organizou bem. Não colocámos praticamente isolamento em nenhum destes edifícios. Em mais de 100 mil candidaturas, a percentagem de tratamento da envolvente foi muito pequena. Nos avisos para os edifícios da Administração Pública Central (serviços), acabamos por olhar pouco para a envolvente, porque o mérito para a candidatura ser aprovada é alavancado na poupança energética e a envolvente não tem um impacto tão grande como os sistemas de climatização e as renováveis, que são incontornáveis”, explica Nuno Simões. E esta é uma queixa generalizada porque, com estas estratégias, continuamos descentrados do essencial: “Não estamos a baixar as necessidades dos edifícios. Vamos muito a reboque daquilo que é a regulamentação europeia”, denuncia António Tadeu.

É muito difícil e caro encontrar uma estratégia de reabilitação à escala nacional. “É praticamente impossível intervir na envolvente de forma barata. Esse custo tem de ser assumido”, sublinha Nuno Simões. “Se quisermos ter uma estratégia em larga escala e atingir um número significativo de edifícios, provavelmente temos de tipificar algumas soluções até conseguirmos ter um custo de referência para elas. Arrisco a dizer que até podíamos ter prototipagem à cabeça [para isso]. Ou seja, podíamos pensar em soluções que fossem aplicáveis na nossa realidade, para a nossa realidade construtiva, para as nossas competências, fazer um teste em duas, três ou mais casas, aprimorar os detalhes e escalar com base numa referência, num benchmark. Isto já está a ser trabalhado noutros países.”

Para este investigador, há ainda uma falta de preocupação pelos detalhes que, ao ser acautelada, contribuiria em muito para a qualidade dos edifícios. “Na área dos envidraçados, já estamos muito sensibilizados para o coeficiente de transmissão térmica, para o factor solar, mas raramente temos uma exigência de resistência ao vento, por exemplo. É raro ver essa exigência num projecto ou num caderno de encargos. Raramente temos a pormenorização da ligação da parede à janela e essa ausência, por vezes, condiciona o desempenho do edifício para a frente. Tem de se ir ao detalhe milimétrico para ver se conseguimos cumprir ou não. Há um distanciamento muito grande entre esta realidade e aquilo que se vai fazendo. Falhamos quando não usamos os acessórios que os fabricantes têm disponíveis, que, muitas vezes, o resto da cadeia desconhece. Sem durabilidade não há sustentabilidade.”

Nova vida para os materiais?

A função dos materiais é incontornável não apenas quando se trata de conforto térmico ou eficiência energética, mas também quando se fala nas suas características e constituição. Mais, os processos construtivos vão determinar e condicionar um balanço energético e ambiental que se quer rigoroso. Não perdendo de vista esta dimensão da sustentabilidade é interessante verificar que o caminho já começou de um lado da cadeia de valor: o da construção.

Do lado da gestão dos materiais de construção, a regulamentação aponta para que estes produtos incorporem 10 % de matérias recicladas. A legislação é recente, mas já deu esse passo e o objectivo é caminhar num sentido de maior exigência. Os fornecedores têm de ter maneira de comprovar as características dos seus produtos no âmbito dos processos de produção e controlo de qualidade; tudo se passa num regime jurídico de 2020 (Decreto-Lei n.º 102-D/2020), que está subjacente a toda a gestão dos resíduos e que vem impactar toda a regulamentação, nomeadamente a sua caracterização, categorização de sub-produtos, etc. As empresas estão cada vez mais atentas e a mudança de paradigma já começou. Se recuarmos uns anos, lembramo-nos da conotação muito negativa associada à palavra “resíduos” e, actualmente, essas características são valorizadas e apresentam-se como uma ferramenta de comunicação imprescindível na indústria.

“Há várias combinações de materiais para se atingir os 10 % exigidos. Podemos optar por um isolamento que incorpora material reciclado ou por usar aço reciclado, por exemplo”, explica João Almeida, químico de formação e investigador do Itecons. “Podemos sempre seguir um plano que pode, depois, ser revisto na fase de execução. Deverá existir esta flexibilidade ao nível do projecto e do caderno de encargos (CE)”, alerta Inês Santos, engenheira do ambiente e também investigadora no Itecons. “Sabemos que os materiais detêm percentagem de reciclado: cartonados, aglomerados de cortiça, [etc.], conhecemos bem esses materiais, mas, com certeza, existem outros que não conhecemos e que são importantes. Quem executa deve ter sempre a liberdade de encontrar soluções alternativas.”

Este é um tema que exige uma maior disseminação da informação junto dos projectistas e, sobretudo, um necessário investimento de tempo destes profissionais no sentido da actualização do conhecimento. Segundo os especialistas, esta exigência dos 10 % é um primeiro passo para a sensibilização e a procura de outras soluções por parte dos projectistas, mesmo que ainda não existam metodologias afinadas para o efeito. “É um estímulo importante e, agora, precisamos todos de aprender com o processo”, explicam-nos os investigadores do Itecons e exemplificam: “temos casos de reabilitações nos quais, para além da incorporação do reciclado nos materiais, é pedido que os materiais existentes sejam reutilizados na própria obra, no sentido de promover a valorização dos resíduos. Nestes planos de gestão, estamos a falar de 70 % de utilização de materiais reutilizados e com a mesma função (depois de tratados e aproveitados).”

Energia incorporada. Um caminho difícil?

O tema da energia incorporada já está em cima da mesa, ainda assim, o processo não se avizinha breve ou simples e há muitos factores a considerar para aprofundar o assunto. “A energia incorporada no fabrico dos materiais tem uma importância relativa se olharmos para a frente e considerarmos o impacte ambiental de todo o processo que arrasta um número mais elevado de emissões”, esclarece João Almeida. Este é um primeiro factor a ter em conta, mas existem mais: a energia incorporada nos materiais é uma dimensão de um problema maior. É que podemos ter um produto que está muito bem optimizado do ponto de vista do processo de fabrico, do transporte, etc., mas ser muito impactante ao nível de outras categorias ambientais. Ou seja, a questão está em enquadrar e entender os produtos que escolhemos para os nossos edifícios num balanço mais alargado que inclui, ainda, as suas várias categorias de impacte ambiental. “Entendemos bem a parte da energia incorporada, estamos habituados à energia e à pegada de carbono. O CO2 incorporado no produto, também o entendemos. É intuitivo, só que, depois, temos outras categorias de impacte ambiental a ter em conta”, explica Inês Santos. João Almeida reforça: “é possível optimizar e trabalhar os produtos e os processos para serem mais económicos ao nível da energia que arrastamos, mas não há garantias de que não estejamos a transferir impacte ambiental para outras categorias”. É também por isso que é tão importante a análise do ciclo de vida de forma a conseguirmos olhar para o problema na sua globalidade. Até porque, alerta o especialista, o inverso pode ser verdade: “podemos ter um material com uma energia incorporada maior na fase de fabrico, transporte ou instalação, mas que, depois, pode representar um benefício muito importante em termos de poupança energética ao longo da sua vida. Muitas vezes, conseguimos recuperar essa energia e ter um balanço positivo.”

Categorias de impacte ambiental

Aquecimento global – total; Aquecimento global – fóssil; Aquecimento global – biogénico; Aquecimento global – uso de solo e alteração do uso de solo; Depleção da camada do ozono; Acidificação; Eutrofização, água doce; Eutrofização, marinha; Eutroficação, terrestre; Oxidação fotoquímica; Depleção de recursos abióticos, fósseis; Depleção de recursos abióticos, minerais e metais; Uso de água.

Metodologias precisam-se!

Mesmo com o conhecimento necessário, a fase de implementação destes conceitos é uma tarefa difícil. “A metodologia existe. Aquela que hoje se pode aplicar é uma metodologia de ciclo de vida”, explica-nos João Almeida, mas não chega. Falta tudo o resto: sistematizar soluções, ferramentas, metodologias, requisitos, etc., para a análise e concretização de um balanço que, inevitavelmente, um dia será incluído nos sistemas de certificação energética nacionais. “A mudança vai acontecer quando deixarmos de olhar apenas para a fase do uso do edifício e conseguirmos recuar nos processos e trazer para esta equação a energia incorporada dos materiais. O cálculo ou as metodologias não são a parte mais difícil. O mais difícil está na implementação”, aponta Nuno Simões. João Almeida acrescenta: “não é difícil estimar a energia incorporada. Quando olhamos para um produto como uma caixa, vemos uma série de saídas e entradas e uma delas é a energia. O que temos de fazer é inventariar, recuar no processo e perceber onde há energia envolvida. Podemos olhar para as potências dos equipamentos, quanto tempo vão estar a trabalhar, e para a factura energética da empresa fabricante e percebemos estas contas com alguma facilidade. Existem formas de as fazer.”

Dados estes passos, a dúvida está na necessidade de classificar estes produtos. “Já há metodologias a serem desenvolvidas e implementadas. A metodologia de base dessas ferramentas é a avaliação do ciclo de vida. Depois, temos as DAP, que já nos dão essa informação, mas não uma classificação de um produto. Permitem uma comparação entre produtos da mesma categoria e com a mesma função”, explica Inês Santos. “Tipicamente, as DAP vão desde a extracção das matérias-primas até à saída da fábrica, ao que se junta a etapa de fim de vida, que recentemente passou a ser de avaliação obrigatória. As DAP têm o objectivo de estudar o ciclo de vida completo dos materiais.”

“A mudança vai acontecer quando deixarmos de olhar apenas para a fase do uso do edifício e conseguirmos recuar nos processos e trazer para esta equação a energia incorporada dos materiais. O cálculo ou as metodologias não são a parte mais difícil. O mais difícil está na implementação.”

Há muitos detalhes que trazem complexidade para o problema, mas hoje temos mais conhecimento e a realidade vai-se alterando. “O factor do transporte, que até há uns anos era uma parcela decisiva nesta equação, hoje não é tão valorizado. O transporte marítimo não tem um peso tão grande, ao contrário do transporte rodoviário”, esclarece João Almeida. “É um caminho que tem tido vários desafios. Quando olhamos para uma DAP, há um conjunto de regras a que temos de obedecer, mas essas regras não são obrigatórias e existe algum grau de liberdade.”

Qual o melhor caminho? Talvez precisemos de ir por fases, perceber que cenários estão em cima da mesa e, só depois, tornar os processos e os produtos comparáveis. Será assim? “É um processo que tem de entrar gradualmente no certificado dos edifícios. É uma abordagem que já seria possível, mas que carece de muito trabalho e de muitos estudos caros e complexos”, argumenta Nuno Simões.

“Está a ser feita uma revisão do acervo normativo e há essa vontade. Se tentarmos ser ambiciosos de mais, ninguém vai conseguir avançar porque este tema é difícil de comunicar. Provavelmente, vamos ter de entrar num compromisso, abdicar da complexidade e ter um ou dois indicadores mais objectivos que sejam mais relevantes no momento actual e que possam ser revistos no futuro. Daí a importância de investir naqueles que têm mais relevância: emissão de CO2 e energia incorporada”, sugere João Almeida. Até porque, para estes investigadores, as empresas desta fileira da construção acabam por ser o agente mais sério nesta cadeia e com uma preocupação com o conhecimento nestas áreas muito grande. Do outro lado, temos os projectistas que “provavelmente nunca olharam para uma DAP. Há um gap muito grande entre aquilo que está a acontecer no mercado (indústria) e aquilo que é o conhecimento dos projectistas sobre estas matérias”.

Nuno Simões não tem dúvidas de que “estamos a olhar para uma parcela pequena do problema, quando há todo um outro mundo para tratar e, por isso, ainda vai levar algum tempo para podermos dizer que os edifícios são [têm] emissões nulas e que um é muito mais verde do que o outro”.

Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro/Fevereiro de 2023 da Edifícios e Energia