Autores: Kamel Mohamed Rahla¹, Rand Askar¹*, José Pedro Carvalho¹**, Luís Bragança¹
¹ Institute for Sustainability and Innovation in Structural Engineering (ISISE), Universidade do Minho, Guimarães
* Apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia através do Programa EcoCoRe (PD/BD/150400/2019)
** Apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia através do Programa Operacional Regional do Norte (SFRH/BD/145735/2019).

 

Redefinir a indústria da construção e desafiar os profissionais a reconsiderarem a forma como projetam e constroem edifícios, tendo em consideração os seus cenários de fim de vida.

A rápida expansão urbana e as alterações climáticas a que o mundo está a assistir têm vindo a motivar os decisores políticos a considerarem novas abordagens para mudar o atual modelo de consumo e produção, de forma a dissociar o crescimento económico dos respetivos danos ambientais. Nesse sentido, a Comissão Europeia divulgou em 2015 um plano de ação que tem como foco a implementação da Economia Circular (EC) em diferentes setores. O plano de ação foi atualizado e refinado em 2020 para aprofundar as estratégias existentes, assim como para lidar com as barreiras e obstáculos à adoção do conceito.

Em Portugal, o ministério do Ambiente e da Transição Energética adotou uma abordagem semelhante e lançou um novo plano de ação para a EC, de forma a reduzir a dependência do país em matérias-primas e aumentar a eficiência dos recursos. A indústria da construção foi identificada como um setor com enorme potencial para a implementação efetiva dos conceitos da EC em toda a sua cadeia de valor. Assim, será possível estimular todos os envolvidos a considerarem o ambiente construído como um sistema de circuito fechado, em que os recursos mantêm o seu valor.

Apesar dos interesses e vantagens da EC, existem ainda vários obstáculos que precisam de ser analisados e ultrapassados, de modo a concretizar a mudança de paradigma no ambiente construído português. A investigação científica e as práticas recentes têm-se focado principalmente na reciclagem de resíduos de construção e demolição (RCD), em vez de na adoção de uma abordagem holística, onde se consideram outro tipo de ações para garantir um cenário de fim de vida mais favorável ao meio ambiente e económico – manutenção, reutilização e/ou remanufactura. Embora o conceito da EC pareça simples, traduzir o pensamento circular para o ambiente construído português pode ser uma tarefa árdua. Esta é ainda dificultada pela complexidade de implementação, visto que a prática atual consiste principalmente na demolição de ativos em fim de vida, em vez de os desconstruir ou adaptar às novas necessidades dos utilizadores.

Dado o papel primordial das práticas de construção no ambiente edificado português, existe ainda uma clara necessidade de enquadramento estratégico para implementar a EC na indústria. A adoção da EC permitirá impulsionar a competitividade do setor, mapear os fluxos de recursos e criar um novo fluxo de materiais e componentes de construção secundários, para aliviar a pressão sobre o meio ambiente e promover o bem-estar económico e social.

Fluxos de recursos circulares

Os recursos naturais são substancialmente utilizados e consumidos ao longo das diversas fases de vida dos edifícios, levando a que a indústria seja responsável por cerca de 30 % do consumo de água e 40 % da extração de matérias-primas e consumo energético. Através da adoção de estratégias específicas de EC, podem ser geradas economias significativas com o desenvolvimento de sistemas adequados que retenham o valor dos recursos e os mantenham em fluxos circulares. Este tipo de abordagem iria encerrar os circuitos de materiais, energia e água, assim como diminuir os respetivos impactes ambientais associados.

Os materiais e componentes de construção devem ser utilizados da maneira adequada e o seu valor mantido sempre que possível. O ciclo técnico consiste na seleção de materiais e componentes que possam ter a sua vida útil prolongada por meios de reutilização, recondicionamento, reparação e/ou remanufactura. Atualmente, a reciclagem e a incineração são as estratégias menos promovidas do ponto de vista ambiental, pois o valor do ativo é frequentemente diminuído. Por sua vez, o ciclo biológico envolve materiais naturais, usualmente biodegradáveis no seu fim de vida (por exemplo, materiais de base biológica).

Os materiais de origem local irão estimular a economia nacional e diminuir os impactes ambientais decorrentes do seu transporte. A baixa energia incorporada e emissões de carbono devem também ser priorizados. Nesse sentido, emerge a necessidade de um estudo conceptual para compreender e identificar os trade-offs a nível local, quando se trata de selecionar materiais.

Políticas recentes sobre nZEB desafiaram os profissionais a produzir edifícios de alto desempenho energético. Ajustar estas políticas com a visão da EC pode levar a novos impactes positivos, promovendo o projeto circular e a produção local de energia renovável. Além disso, o uso de materiais com baixa energia incorporada pode ainda ajudar a diminuir as necessidades globais de energia de um edifício em todo o seu ciclo de vida.

Ao longo do ciclo de vida do edifício, a energia é substancialmente utilizada e consumida desde a extração e o processamento de materiais, até às fases de construção, operação e demolição ou desconstrução do edifício. Políticas recentes sobre edifícios com requisitos energéticos quase nulos (nZEB) desafiaram os profissionais a produzir edifícios de alto desempenho energético. Neste contexto, ajustar estas políticas com a visão da EC pode levar a novos impactes positivos, promovendo o projeto circular e a produção local de energia renovável. Além disso, o uso de materiais com baixa energia incorporada pode ainda ajudar a diminuir as necessidades globais de energia de um edifício em todo o seu ciclo de vida.

Com a urbanização à escala global, a água está a tornar-se um recurso cada vez mais escasso dado o grande crescimento da procura, levando a que muitos investigadores apontem uma possível crise de água doce até o final deste século. Tal como a energia, a água é mais consumida durante a fase de operação do edifício, apesar da sua utilização na fabricação de diversos materiais de construção, como betão e outros materiais à base de cimento. A seleção de materiais com baixo teor de água incorporado levará também a uma diminuição da pegada hídrica do edifício. O projeto e arquitetura do edifício devem sempre ser adaptados ao contexto português para abranger a eficiência hídrica, por exemplo, através da captação de água da chuva e/ou reutilizando as águas cinzentas.

Estratégias de projeto para a Economia Circular

Design para a Adaptabilidade

A fim de facilitar a conversão e a valorização da qualidade dos materiais, a conceção de edifícios circulares exige edifícios adaptáveis. O design para a adaptabilidade (DfA) foi considerado como um impulsionador importante para a circularidade dos edifícios, uma vez que lida com questões de obsolescência e excesso de edifícios abandonados, considerando o ciclo de vida dos mesmos e dos seus componentes, de modo a estender a sua vida útil. Este pensamento anda de mãos dadas com as estratégias principais da EC, baseadas no “encerramento do ciclo” e “desaceleração do ciclo” com o objetivo de garantir a minimização do consumo de recursos naturais, bem como o consumo de energia, de modo a reduzir a pegada ambiental das atividades de construção. O “encerramento do ciclo” pressupõe a implementação de estratégias de reutilização e reciclagem intensivas de componentes e materiais, ao passo que a “desaceleração do ciclo” visa maximizar a longevidade e a preservação de valor, da qualidade e do desempenho dos materiais e produtos de construção.

O paradigma atual na conceção e construção de edifícios baseia-se num modelo linear de produção e consumo. Esse modelo de desenvolvimento demonstrou ainda uma deficiência fundamental que se traduz em enormes quantidades de RCD gerados através de demolições não seletivas e, por vezes, precoces. Os modelos circulares de produção e consumo exigem a conceção de edifícios adaptáveis que incorporam os cenários de fim de vida como uma etapa essencial dentro do processo de design e construção. Uma aplicação importante do DfA à luz da EC passa por projetar construções multifuncionais de uso partilhado e alternado, intensificando sua utilização e maximizando a sua vida útil.

Design para a Desconstrução

O design para a desconstrução (DfD) é uma estratégia fundamental para o projeto de edifícios circulares. Implica que todos os materiais e produtos utilizados nos edifícios possam ser desmontados e recuperados sem os danificar. Desta forma, os materiais e componentes dos edifícios têm o potencial de serem reutilizados ao máximo. A reutilização direta de componentes contribui para a redução de RCD, assim como para a economia de energia e, eventualmente, levará à existência de edifícios com várias vidas (encerramento do ciclo), estendendo drasticamente o ciclo de vida desses mesmos componentes (desaceleração do ciclo). Quando os componentes são projetados para serem desmantelados e reutilizados, surge uma vantagem adicional para a sustentabilidade, nomeadamente na redução de custos e dos impactos ambientais. O DfD é uma estratégia que depende em grande parte da integração de componentes e da facilidade de acesso aos mesmos, para a sua adequada remoção e substituição. Neste contexto, a utilização de conexões desmontáveis e componentes pré-fabricados são facilitadores fundamentais para a desconstrução dos edifícios, visto que garantem a recuperação de materiais reutilizáveis, assim como permitem operações fáceis de manutenção, reparação e substituição.

O papel da digitalização

Com os avanços tecnológicos, a informação está a tornar-se um recurso essencial para a indústria da construção gerir o desempenho dos edifícios, desde as fases iniciais de projeto até ao seu fim da vida. São necessárias informações específicas para garantir uma adequada manutenção de um edifício, bem como a vida útil técnica de todos os materiais em utilização. O mapeamento dos fluxos de recursos permite que os envolvidos adquiram conhecimentos mais aprofundados sobre a entrada e saída dos mesmos.

Atualmente, o desafio mais significativo a nível urbano passa pela produção de conhecimentos e dados sobre a composição material das edificações existentes. A digitalização do ambiente construído português pode ainda ser vista como uma abordagem rápida para a implementação da EC neste setor. O mapeamento e a gestão dos materiais por meio de conjuntos de dados específicos irão promover a reutilização dos mesmos, assim que estes atinjam o final da sua vida útil, fomentando a retenção do seu valor. Para materiais e componentes de edifícios, as suas informações e especificações podem ser armazenadas através de Passaportes de Materiais, que são partilhados e disponibilizados permanentemente para todos os envolvidos no edifício. O Passaporte de Material (MP, na sigla em inglês) foi desenvolvido durante um projeto financiado pela União Europeia – BAMB – com o intuito de apoiar projetos de construção circular, facilitando a seleção de materiais circulares e aumentado a sua vida útil, através da retenção do seu valor. O MP fornece informações qualitativas e quantitativas sobre as propriedades físicas, químicas e biológicas dos materiais, permitindo que os profissionais selecionem produtos de construção seguros para o ambiente, tendo em consideração os princípios da EC.

Na mesma linha, o Building Information Modeling (BIM) é uma metodologia de trabalho que permite modelar edifícios digitalmente, onde se pode armazenar informações valiosas para auxiliar a tomada de decisão ao longo do ciclo de vida do edifício. No contexto da EC, o BIM pode ser considerado como uma abordagem específica para minimizar e gerir o desperdício ao longo de todo o ciclo de vida do edifício. Contudo, o BIM ainda não é usualmente aplicado na gestão de edifícios quando estes atingem o final da sua vida útil. Estudos recentes tentaram vincular os MP com o BIM, para compilar os dados sobre as características dos materiais de construção, avaliar o seu potencial de reciclagem e impactes ambientais ou ainda para a reutilização de resíduos como um novo material de construção. No entanto, a integração dos MP na metodologia BIM ainda se encontra em fases muito iniciais e requer um profundo compromisso da indústria da construção. Este tipo de abordagem irá também enfrentar diversos obstáculos, tais como a quantidade de dados que devem ser gerados, a sua qualidade e a sua confiabilidade, o que irá exigir padrões específicos, assim como uma estreita colaboração e transparência entre todos os envolvidos ao longo da cadeia de valor.

Conclusões e perspetivas futuras

A indústria da construção é responsável por elevados impactes ambientais, consumindo grandes quantidades de recursos naturais e produzindo resíduos em quantidades consideráveis. Com a incentivação da economia circular, o setor está a lentamente a adotar este novo conceito, através da implementação dos seus princípios nas atuais práticas de construção. Tais princípios exigem uma mudança de paradigma, tendo em vista a produção e o uso sustentável dos recursos disponíveis, um cenário planeado para fim de vida dos edifícios, uma abordagem holística para a criação de um sistema cíclico fechado, assim como uma gestão inteligente de recursos.

A EC no setor da construção tem como objetivo redefinir a indústria e desafiar os profissionais envolvidos a reconsiderarem a forma como projetam e constroem edifícios, tendo em consideração os seus cenários de fim de vida. No entanto, estratégias específicas de EC para o contexto português necessitam ainda de ser exaustivamente investigadas para identificar possíveis oportunidades de melhoria e lacunas que precisem de ser corrigidas. Por fim, para implementar totalmente esta mudança de paradigma, é ainda necessário atuar ao nível governamental, através de alterações regulamentares e legislativas que promovam a transição para práticas mais concretas.

 

Este artigo foi originalmente publicada na edição nº135 da Edifícios e Energia (Maio/Junho 2021)

As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.