Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro/Fevereiro de 2022 da Edifícios e Energia

Num futuro próximo em que os edifícios terão emissões nulas, o autoconsumo colectivo de energia de origem renovável apresenta-se como uma das soluções incontornáveis. Em Oeiras, um grupo de vizinhos não quer deixar o assunto em mãos alheias e juntou-se num projecto pioneiro no país que coloca o cidadão na liderança de uma comunidade de energia.

Em Oeiras, um grupo de cidadãos que vivem no mesmo edifício prepara-se para implementar uma comunidade local de energia. Para o fazer, vão investir num total de cinco módulos fotovoltaicos e esperam, assim, gerar localmente e de forma sustentável uma parte da electricidade que usam nas suas casas. À primeira vista, e dado o interesse crescente em modelos de autoconsumo colectivo, parece não haver nada de muito invulgar ou curioso nesta iniciativa, no entanto, há algo que a distingue das outras: é que, pela primeira vez em Portugal, uma comunidade local de energia vai ser liderada por cidadãos.

A iniciativa é pioneira a nível nacional e conta com a ajuda da cooperativa de energias renováveis Coopérnico, que assumirá o investimento inicial no sistema fotovoltaico de autoconsumo colectivo e dará também apoio na componente burocrática do projecto, incluindo a criação do regulamento interno e o registo da comunidade na Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). Não obstante, são os cidadãos que assumem as rédeas do processo de implementação e desenvolvimento do projecto.

Das seis famílias que habitam o prédio, quatro já estão envolvidas na criação da comunidade. Os cinco módulos fotovoltaicos de 450 Wp, que correspondem a uma potência instalada de 2.25 kWp, vão permitir a produção estimada de 3307 kWh/ano. “Este sistema de autoconsumo vai suprimir as necessidades de energia eléctrica em 830 kWh/ano”, explica a Coopérnico, estimando que a poupança anual destas famílias chegue aos 154 euros.

Fazer a diferença no futuro

“Comunidade liderada por cidadãos” – é desta forma que Ana Rita Antunes, coordenadora executiva da cooperativa Coopérnico, explica à Edifícios e Energia no que consiste o projecto de Oeiras. Para evitar confusões, a responsável esclarece que “não se trata de uma Comunidade de Cidadãos para a Energia”, como é definida na directiva europeia UE 2019/944.

“Na prática, este é um projecto de autoconsumo colectivo (ACC). O que acrescentámos, e sublinhámos, é que este é o primeiro projecto de comunidade de energia renovável liderada por cidadãos”, diz. E, para a cooperativa portuguesa, não poderia ser de outra forma: numa comunidade de energia cidadã, são os cidadãos que lideram o processo de implementação e desenvolvimento da sua comunidade local de energia. “Para a Coopérnico, e para o movimento das comunidades de energia em toda a Europa, é fundamental que o investimento em projectos de comunidades de energia com base em diversas tecnologias (solar, eólica, hídrica ou outra) seja realizado [por] ou tenha uma ampla participação de cidadãos”, refere.

comunidade cidadaos

Alguns dos cidadãos que vão liderar esta comunidade de energia em Oeiras.

De forma a reforçar ainda mais esta mensagem, a cooperativa portuguesa escolheu uma data simbólica para anunciar publicamente esta “primeira comunidade de energia liderada por cidadãos” – 15 de Novembro de 2021, o dia em que a Coopérnico assinalou oito anos. “Este passo que damos, precisamente, na altura em que celebramos o nosso oitavo aniversário é importante para mostrar que qualquer cidadão pode fazer a diferença no futuro da Humanidade e do planeta, enquanto se está a proteger de uma economia de mercado e sector que nem sempre defendem os interesses dos cidadãos acima de outros”, afirma Ana Rita Antunes, sem esconder o “muito orgulho” que sentem os membros da cooperativa por apoiar esta comunidade.

É a partir do princípio da participação cidadã activa que se está a desenrolar este projecto piloto, que une, para já, quatro famílias. Tudo está a postos para arrancar, aguardando-se apenas resposta da DGEG para a instalação, cujo registo foi feito em Outubro passado. Nesta experiência, o investimento inicial está a cargo da Coopérnico – contando, para tal, com o apoio do projecto europeu COMPILE –, que será ressarcida pelos cidadãos ao longo dos próximos anos, explica Ana Rita Antunes. “Em projectos futuros, o que se pretende é que sejam os próprios cidadãos a fazer o investimento e a concretizar o seu próprio projecto”, esclarece. Sem divulgar o valor do investimento em causa, nem o tempo estimado para o payback, a coordenadora executiva diz apenas que, “nesta fase, o investimento foi mínimo para não haver excedente, já que a legislação em vigor não é favorável à [sua] valorização, caso haja”.

Ainda que a instalação esteja pendente da luz verde da DGEG, o trabalho feito até aqui no projecto permite já tirar algumas conclusões sobre as dificuldades existentes à criação de comunidades deste tipo. “Podemos dizer, para já, que é preciso simplificar a parte burocrática para que todos os cidadãos se possam entusiasmar a levar um projecto destes a todos os prédios do país”, aponta Ana Rita Antunes. Como sugestão, a responsável alerta para a necessidade de se criar um “balcão único” para as Comunidades de Energia Renovável e para ACC lideradas por cidadãos, caso contrário, “projectos como estes só serão viáveis em pólos de serviços ou industriais”.

Outras experiências

Enquanto comunidade de energia liderada por cidadãos, a experiência de Oeiras vai ser a primeira do género conhecida em Portugal. No entanto, os modelos de autoconsumo colectivo, em particular, as comunidades de energia (renovável), têm vindo a ganhar interesse no último ano, apresentando-se no debate público como uma das soluções para acelerar a transição energética e, também, ajudar a combater a pobreza energética. Em 2021, e depois de mais de um ano em stand-by, a publicação, em Abril do ano passado, do Regulamento do Autoconsumo de energia eléctrica veio finalmente dar um novo fôlego a este mercado, com vários projectos com vista à criação de comunidades de energia a serem anunciados por todo o país, a maioria levada a cabo por entidades públicas ou municipais. Todavia, a complexidade aos níveis da engenharia e da análise financeira parecem ainda levantar dúvidas e os projectos vão avançando de forma lenta.

Nesta matéria, a participação no projecto COMPILE, desde Novembro de 2018, tem contribuído para dar à Coopérnico conhecimento e ferramentas para o desenvolvimento das comunidades de energia, havendo uma experiência avançada já em curso em território nacional. O projecto tem um orçamento total de 6,42 milhões de euros, dos quais 5,4 milhões são co-financiados pelo programa Horizonte 2020.

A missão, pode ler-se no portal oficial da iniciativa, é “mostrar as oportunidades de ilhas de energia para a descarbonização, a construção comunitária e a criação de benefícios ambientais e socioeconómicos”. A ideia inicial do projecto, explica a responsável da Coopérnico, era trabalhar apenas em ilhas energéticas, mas em alguns países parceiros, como Portugal, está a trabalhar-se no lançamento de comunidades de energia em ambiente urbano.

projecto COMPILE

Instalação na Alta de Lisboa, no âmbito do COMPILE. Fonte: COMPILE

O edifício de Oeiras não consta na lista de pilotos do COMPILE, mas um dos cinco previstos situa-se não muito longe: na Alta de Lisboa. A acção contempla um condomínio, com oito edifícios e 180 apartamentos. Para suprir as necessidades energéticas das zonas comuns dos edifícios – incluindo iluminação, elevadores, sistemas de AVAC e até dois pontos de carregamento para veículos eléctricos privados –, já foram instalados oito sistemas fotovoltaicos para autoconsumo no total de 17 kW de capacidade instalada. A expectativa é que, no futuro, os proprietários invistam colectivamente na instalação de mais painéis fotovoltaicos de modo a aumentar a produção, que será partilhada também pelas fracções, e para que possam, assim, tornar-se numa comunidade de energia.

Tanto as acções da comunidade de Oeiras, como as do piloto da Alta de Lisboa estão alinhadas com a visão e actuação da Coopérnico no que toca às comunidades de energia. Para Ana Rita Antunes, a experiência vai ser “um passo fundamental para testar a forma como a legislação e os regulamentos em vigor funcionam no terreno, tirar a aprendizagem necessária para participar na melhoria do quadro legal e das ferramentas técnicas, e também para perceber as oportunidades e barreiras para os cidadãos”.

Com base nisto, conclui a responsável, a intenção da Coopérnico é a de “aprender para depois ensinar os [seus] restantes mais de 2200 cooperantes a implementarem um projecto semelhante no seu prédio, ou no seu bairro”, construindo, assim, “um modelo que permita a criação de muitas outras comunidades de energia cidadãs”.

Manifesto para a transição energética

Perante a urgência da transição energética, a Coopérnico publicou um Manifesto pelo tema, com um conjunto de recomendações para a política energética. Para não comprometer o cumprimento deste objectivo, a cooperativa portuguesa apela a:

  • • Maximizar a eficiência energética;
  • Maximizar a adopção do Autoconsumo Individual;
  • Maximizar a participação de cidadãos em sistemas de Autoconsumo Coletivo e Comunidades de Energia;
  • Facilitar e incentivar novas instalações de médio porte (i.e., 250 kW – 1 MW);
  • Promover a compra, troca e partilha de excedentes;
  • Promover a participação e transparência na implementação (quando inevitável) de grandes centrais solares;
  • Mitigar os impactes das grandes centrais solares, reduzindo-as aos locais com melhor potencial e menor impacto no ambiente.