Combinar o desenvolvimento económico com o desenvolvimento sustentável faz parte das práticas de Barcelona para responder aos desafios urbanos. A transição energética não é excepção e a cidade catalã está a implementar um mecanismo que permite aos seus cidadãos instalar painéis fotovoltaicos e realizar melhorias de eficiência energética sem custos de instalação. Como? Juntando o investimento público ao privado num “modelo de negócio bottom-up”.
Quando se fala de cidades inteligentes e sustentáveis, Barcelona é, na maioria das vezes, uma referência. Densa e compacta, como ditam as regras das tendências do planeamento urbano sustentável actuais, não é só o desenho e a forma que fazem desta cidade espanhola um exemplo a seguir nesta matéria. Para se transformar no que é hoje, Barcelona teve de aprender a conciliar o desenvolvimento económico com o desenvolvimento sustentável e, nas últimas décadas, tem-se destacado pelas suas abordagens inovadoras e pioneiras aos desafios urbanos, combinando temas como a ecologia urbana, a participação cidadã e o envolvimento das comunidades, o empreendedorismo, as indústrias criativas, a inovação social ou o uso das novas tecnologias digitais.
Entre as urgências do momento está a necessidade de acelerar a transição energética e, também aqui, Barcelona tem tentado encontrar soluções que não só combinem uma maior sustentabilidade ambiental com a promoção da dinâmica económica da cidade, mas também que sejam justas e acessíveis a todos os cidadãos. O Mecanismo para a Energia Sustentável (MES) Barcelona é uma proposta nesse sentido: incluído na Agenda 2030 da cidade, este instrumento tem como propósito acelerar a transição energética através da instalação de sistemas solares fotovoltaicos para a produção local de energia eléctrica e da implementação de medidas para a melhoria da eficiência energética dos edifícios, sem que os proprietários tenham de fazer qualquer investimento inicial ou de se endividar.
Para que isso seja possível, a abordagem recorre a um modelo de parceria público-privada (PPP) em que o investimento é repartido entre o município e entidades privadas especializadas e devidamente acreditadas para o efeito, e será recuperado através da venda de energia excedente ou para autoconsumo gerada pelas instalações e das poupanças conseguidas com as medidas implementadas, à semelhança do modelo baseados no desempenho usado pelas empresas de serviços de energia (ESE).
Sendo um mecanismo pioneiro à escala municipal e que pretende ser equitativo, o município de Barcelona destinou-lhe 50 milhões de euros do seu orçamento, de modo a diminuir o risco e, assim, atrair os investidores privados. O montante será válido para um período de três anos (2021-2023), com a ambição de alcançar, juntamente com os privados, um total de 166 milhões de euros, parcialmente alavancado por entidades bancárias. A expectativa da cidade é que o MES Barcelona resulte num mínimo de 83 MWp de potência instalada de energia fotovoltaica, aumentando em 66 % a capacidade de produção local de energia de origem renovável. As primeiras instalações com o selo do MES Barcelona só deverão arrancar no primeiro trimestre de 2023, no entanto, a cidade já se destacou pelo seu pioneirismo ao aplicar este modelo e, mesmo sem resultados, o programa foi distinguindo pela ONU como “a iniciativa de colaboração público-privada mais sustentável” entre 70 que foram analisadas a nível mundial.
Como funciona?
“Impulsionar e acelerar a transição energética numa cidade densa e compacta como Barcelona” é, segundo a comissária para a Agenda 2030 da cidade espanhola, Bàrbara Pons Giner, o objectivo derradeiro deste mecanismo para a energia sustentável criado em 2021, numa altura em que a necessidade de uma recuperação económica “verde” pós-pandemia marcava as agendas políticas europeias.
Enquanto “instrumento de acção transversal” da estratégia que coloca a cidade na persecução dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o MES Barcelona resulta de um “compromisso político institucional, transversal e estratégico a longo prazo”, tratando-se assumidamente de “uma PPP”. O mecanismo foi desenhado para atrair investimento privado para financiar projectos de produção de energia fotovoltaica em coberturas e terraços onde tal seja energética e economicamente viável, assim com a melhoria da eficiência energética nos edifícios da cidade. A proposta é ter “um modelo de investimento interessante para os investidores e, ao mesmo tempo, atractivo para os cidadãos e para as empresas da cidade”, no qual estes últimos não tenham de alocar recursos financeiros nem de se endividar para realizar as intervenções. A solução encontrada foi, como lhe chama Bàrbara Pons Giner, um “modelo de negócio bottom-up, em que a administração municipal participa e promove acordos livres entre diferentes agentes com objectivos e especialidades de negócio sectoriais distintos, mas apenas investe em propostas de negócio de investidores acreditados consistentes com a filosofia e o enquadramento geral do MES Barcelona – [um mecanismo] sustentável dos pontos de vista económico, energético e social”. Deste modo, diz, “é assegurado um tratamento equitativo aos candidatos, independentemente do seu estatuto social ou cultural e da sua capacidade financeira ou consciência ambiental”.
Nas tipologias de projectos previstas, constam medidas activas, como a instalação de painéis fotovoltaicos e de outros equipamentos de fontes de energia renovável, medidas passivas, como intervenções ao nível da envolvente, e medidas de inovação tecnológica em energias limpas. Todavia, no modelo de negócio pretendido em que o investimento é recuperado através do desempenho ou da venda de energia, a instalação de fotovoltaico para a produção local de energia acaba por ser favorecida.
O investimento em cada projecto é feito através de veículos para fins especiais (SPV, na sigla em inglês) de co-investimento, nos quais o ayuntamiento de Barcelona comparticipa até 30 % do capital e os investidores privados entram com um mínimo de 70 %, sendo que os SPV podem ainda financiar-se através de empréstimos bancários, que podem representar metade do investimento a realizar. O mecanismo prevê que os SPV sejam responsáveis por todos os custos da instalação e assegurem o seu bom funcionamento durante a duração dos contratos, quer sejam projectos de autoconsumo individual, quer sejam projectos de autoconsumo colectivo.
Segundo explica a responsável, as propostas-tipo feitas pelos investidores aos proprietários baseiam-se em contratos de Power Purchase Agreement (PPA) – isto é, de compra e venda de energia de longo prazo – e seguem dois parâmetros: a poupança líquida, desde o primeiro dia, face à última factura de electricidade recebida, para a potência instalada de produção para autoconsumo, incluindo o seguro e a manutenção durante a vigência do contrato; a reversão da propriedade da instalação aos proprietários do edifício após a conclusão do PPA, que varia normalmente entre os cinco e os dez anos, conforme o projecto, tendo também em conta que os painéis fotovoltaicos têm uma vida útil superior a 25 anos. Além disso, os proprietários dos edifícios onde sejam instalados painéis fotovoltaicos beneficiam, durante os primeiros três anos, de uma bonificação de 50 % no IMI, ainda que o investimento não tenha sido feito por eles.
Para fazer parte do mecanismo e poder apresentar propostas aos candidatos, as entidades investidoras devem ser devidamente acreditadas pelo município para o efeito. Inicialmente, relata a comissária, a captação das primeiras empresas teve de ser feita por proposta directa, mas, à medida que o MES Barcelona foi sendo apresentado publicamente, o interesse foi surgindo, em particular aquando da abertura de avisos para a acreditação de investidores ou do anúncio de projectos relevantes, como o do centro alimentar Mercabarna.
Actualmente, são 15 as entidades investidoras acreditadas com “diferentes perfis: comercializadoras de energia de grande e média dimensão, construtoras, fundos de investimento, sociedades de capital de risco e empresas especializadas em energias limpas”. Endesa, Iberdrola, GVC, Accelera Energia, Suma Capital SGECR são apenas alguns dos nomes que constam neste lote. “Devo dizer que nem todas as entidades acreditadas são igualmente activas. De facto, aquelas que se juntaram mais recentemente ao programa tendem a avançar com mais velocidade e a colaborar mais do que algumas que estão presentes desde o início, o que mostra uma certa maturidade do projecto em relação às expectativas e aos interesses mútuos”, avalia Bàrbara Pons Giner.
Do outro lado, os proprietários interessados em candidatar os seus imóveis podem, a qualquer altura, inscrever-se no portal do MES. O mecanismo não é exclusivo para o sector residencial e aplica-se a todo o parque edificado de Barcelona, incluindo os edifícios públicos. “Os proprietários, que podem ser cidadãos com moradias, condomínios ou empresas, preenchem um formulário cujos dados são enviados aos investidores acreditados, mediante a estratégia sectorial previamente divulgada. [Por sua vez,] Os investidores, ou os seus associados, comunicam com o requerente para completarem a recolha das informações necessárias, avaliarem a idoneidade da infra-estrutura, a viabilidade do projecto e, se for caso disso, apresentarem propostas aos proprietários dos edifícios”, explica. Apesar da promoção “muito escassa” da iniciativa, a receptividade ao programa acabou por ser “muito boa”, considera a responsável. Actualmente, estão registados pedidos de mais de 1 500 edifícios distintos, sendo a grande maioria residencial, em regime de comunidades de proprietários.
“Um programa totalmente novo e pioneiro”, mas com muitas incertezas
Até finais de 2022, segundo fonte oficial, nenhum projecto financiado no âmbito do MES Barcelona tinha ainda avançado. A situação deve alterar-se muito em breve, já que, revela Bàrbara Pons Giner, as primeiras instalações, cujos contratos estão já fechados ou as adjudicações públicas em curso, estão previstas para o primeiro trimestre do novo ano. Neste período, “uma vez obtidas as licenças necessárias das diferentes administrações envolvidas em cada caso”, prevê-se a instalação de mais de 8 MWp, com um investimento final associado de 6,3 milhões de euros.
O hiato de tempo entre a criação do mecanismo e o seu arranque efectivo no terreno não é de estranhar, já que se trata de “um programa totalmente novo e pioneiro, [e] também ambicioso nos seus objectivos”, diz a comissária. “Foi necessário consolidar a curva de experiência – isto é, aprender fazendo –, que está a alcançar, justamente agora, passados dois anos da proposta inicial, a maturidade suficiente para o arranque definitivo”, afirma, reforçando que “nem tudo era previsível ou imaginável ex-ante, nem era confiável estabelecer prazos de conclusão”. Para Bàrbara Pons Giner, apenas “o rumo e a razão de ser” do mecanismo eram claros e, por isso, se mantiveram inalterados desde o começo, “mesmo que o vento não tenha soprado sempre de popa, nem as correntes tenham sido muito favoráveis”.
Ao ser um “modelo de negócio bottom-up”, cujo “modus operandi é o de promover o ‘mercado’ entre os investidores acreditados, as ESE, os instaladores, os comercializadores eléctricos e os proprietários de edifícios”, a responsável descreve o MES Barcelona como um “mero catalisador de interesses nem sempre fáceis de compatibilizar”, mesmo que o município aporte uma parte dos recursos financeiros. “O equilíbrio entre interesses privados legítimos, no que se refere tanto à alocação de recursos como à rentabilidade exigida, nem sempre é fácil de compatibilizar, em concreto, com as mudanças tangíveis que melhoram a situação colectiva.”
Além das dificuldades do modelo em si, a comissária chama também a atenção para o facto de “o investimento em cidades não ser propriamente uma prioridade dos investidores privados da área das energias renováveis, já que os custos de produção associados são relativamente elevados [devido à] pequena escala dos projectos, à propriedade fragmentada, à gestão complexa, etc.” Não obstante, “é muito mais barato e eficiente, dos pontos de vista económico, social e ambiental, transportar e distribuir energia solar se esta for gerada próximo dos consumidores”, frisa, lembrando que, no caso de grandes cidades como Barcelona, onde a poluição do ar e as emissões de gases com efeito de estufa estão concentradas, é também “uma necessidade urgente”.
No que toca às renováveis e, em particular, ao solar fotovoltaico para autoconsumo, o enquadramento regulamentar espanhol nos últimos anos tem-se tornado mais favorável, considera a comissária, e haverá avanços em breve. O governo espanhol anunciou, no início de Novembro, que vai aumentar para dois quilómetros a distância máxima permitida entre as instalações de autoconsumo colectivo e os pontos de consumo, o que, para Bàrbara Pons Giner, “é um impulso importante para este tipo de projectos, nomeadamente em grandes cidades como Barcelona, que poderão aproveitar muito melhor os escassos espaços disponíveis de grandes superfícies de forma mais eficiente e atractiva, tanto para os investidores, como para os consumidores que, de outro modo, não poderiam aceder à energia solar”. Ainda assim, há barreiras que persistem e, segundo a responsável, os constrangimentos são vários, nomeadamente nas autorizações dos projectos nos departamentos municipais de urbanismo e no departamento de energia da Generalitat (governos das comunidades autónomas de Espanha), o que, nos casos de projectos com mais de 100 kWp, aporta “atrasos sérios”, e, “muito especialmente”, no procedimento de acesso aos pontos de conexão à rede por parte das empresas distribuidoras de energia.
Por enquanto, e tendo em conta a actual fase de desenvolvimento e de implementação do mecanismo, Bàrbara Pons Giner considera que os 50 milhões alocados pelo ayuntamiento são “suficientes”, mas não descarta a possibilidade de, “num futuro próximo”, se juntarem fundos provenientes de outras entidades administrativas e de o âmbito de actuação poder ser estendido a toda a Área Metropolitana de Barcelona”.
Fotovoltaico vai alimentar Mercabarna
Localizada na Zona Franca de Barcelona, a “cidade alimentar” do Mercabarna, um dos principais mercados atacadistas de alimentos frescos europeus, vai ter “a maior central solar fotovoltaica instalada em cobertura para autoconsumo da Península Ibérica” e este será um dos projectos já anunciados para arrancar com o selo do MES Barcelona. Chama-se REPowerMercabarna-Energía e prevê a instalação de 360 mil m² de painéis fotovoltaicos, numa potência instalada de 18MWp, nas coberturas existentes no recinto, onde se concentram 600 empresas de distribuição, produção, importação e exportação de produtos frescos e congelados. Ao todo, o consumo de energia deste recinto dedicado à alimentação chega aos 90 GW/ano, o que representa a emissão anual de 19 mil toneladas de CO2. Com vista ao autoconsumo, espera-se que o projecto reduza este número em seis mil toneladas.
O investimento público-privado anunciado é de 12 milhões de euros num projecto que será executado por fases. Segundo o portal oficial do Mercabarna, todas as empresas residentes aderiram ao projecto e vão, em troca, “beneficiar de um Índice de Preços ao Consumo reduzido, que exclui as componentes do índice energético e a dos alimentos não processados, nos contratos de arrendamento de 2022 e 2023”.
Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro/Fevereiro de 2023 da Edifícios e Energia