Perante as exigências energéticas e climáticas dos nossos dias, tornar os edifícios mais eficientes já não basta. Para assegurar a sustentabilidade, é preciso subir à escala do bairro e, mais do que neutro, há que ser positivo. O projecto europeu ATELIER quer pôr isto em prática e há, pelo menos, uma cidade portuguesa disposta a aprender as lições da experiência.

Nos próximos quatro anos, oito cidades europeias vão ter como desafio a criação de bairros de energia positiva, isto é, vão implementar soluções inteligentes que tornem determinada área urbana neutra em carbono e onde seja possível gerar mais energia, com origem renovável, do que a aquela que é utilizada. A ideia encontra semelhanças no conceito francês de “edifício de energia positiva” (os BEPOS – Bâtiments à Energie Positif), mas, desta vez, pretende-se alargar o âmbito de acção a todo um bairro. O desafio acontece no âmbito do projecto europeu ATELIER, financiado pelo Horizonte 2020, e tem como “laboratórios” principais as cidades de Amesterdão e Bilbau, que actuam como cidades farol. As restantes seis – Matosinhos, Bratislava, Budapeste, Copenhaga, Cracóvia e Riga – posicionam-se como cidades seguidoras e vão fazer os possíveis para acompanhar e replicar estes dois exemplos.

Em termos quantitativos, o ATELIER tem como o objectivo alcançar uma redução de 1,7 quilotoneladas de CO2 nas duas cidades farol, mas há outras metas que se pretendem atingir e que não podem ser expressas em números. “Até Outubro de 2024, o projecto ATELIER pretende incidir a sua acção na redução de emissões de CO2 e na adopção de sistemas energéticos sustentáveis, seguros e acessíveis à população. Apoiando a concretização destes objectivos, pretende-se, com a ajuda deste projecto, proporcionar uma melhoria na qualidade de vida dos cidadãos e da cidade, quer ao nível do ambiente urbano e habitacional, quer também através da criação de sistemas inteligentes que contribuam para a mobilidade, segurança e acessibilidade”, conta Tiago Maia, administrador da empresa municipal MatosinhosHabit, que integra o projecto europeu.

No âmbito do ATELIER, a cidade portuguesa tem já prevista uma “demonstração” de uma área urbana de energia positiva num dos conjuntos habitacionais geridos pela empresa. No entanto, segundo o responsável, a participação nesta iniciativa europeia, que reúne 30 entidades de 11 países, representa uma oportunidade bem maior para o município nacional, ajudando a definir a sua “visão de cidade” em matéria de descarbonização para as próximas décadas. Enquanto seguidora, que inspiração poderá Matosinhos buscar no que será feito nas cidades farol?

Buiksloterham: ao circular, soma-se o positivo

Sendo uma das cidades europeias mais vibrantes e atractivas, Amesterdão continua a ver o número de habitantes a aumentar, tendo superado um milhão de habitantes em 2019. Este crescimento provoca uma pressão adicional à cidade e às suas infra-estruturas, mas nem por isso o tema da sustentabilidade deixa de ser uma prioridade para o município, que definiu já a transição para uma economia circular e a neutralidade carbónica como objectivos a cumprir. Até 2050, Amesterdão pretende reduzir 95 % das emissões de carbono, com o ambiente construído a desempenhar um papel importante neste roteiro (representando 25 % do total das emissões). Com a ambição de tornar todos os edifícios da cidade neutros em carbono em 2050, o caminho começa já a fazer-se este ano, com o reforço dos requisitos para o desempenho energético dos edifícios. Para o efeito, e na sequência da transposição da revisão da Directiva Europeia para o Desempenho Energético dos Edifícios, a partir de 2021, a lei holandesa passa a exigir que todos os novos edifícios sejam “neutros em energia” (BENG). Outros dos marcos neste roteiro será o abandono do gás natural, que deverá ser alcançado a nível municipal em 2040. No entanto, antes disso, em 2022, a cidade estima que 12 bairros tenham já concluído essa transição.

Neste enquadramento, o ATELIER surge como mais uma alavanca para concretizar todas estas metas, focando-se numa localização particular da cidade: Buiksloterham, uma área urbana já conhecida por experiências anteriores enquanto laboratórios vivos de iniciativas relacionadas com a economia circular e sustentabilidade. Aproveitando a sua localização geográfica naquela que era uma das áreas mais poluídas de Amesterdão, a zona industrial na margem Norte do IJ, as várias transformações ocorridas neste bairro com vista a uma maior sustentabilidade têm ainda mais impacto para a cidade.

Aproveitando o facto de a lei holandesa abrir excepções em termos regulatórios de forma a incentivar o desenvolvimento e adopção de soluções inovadoras no sistema energético, Buiksloterham prepara-se, através do ATELIER, para abraçar o conceito de “bairro de energia positiva” e a aposta na sustentabilidade ambiental do edificado é um dos pontos fortes da acção.

Buiksloterham, Amesterdão ©️ Projectvisuals

Nos planos para Buiksloterham está a construção de dois empreendimentos de edifícios de elevado desempenho com uma área total de 22 000 m2: Poppies e Republica. O Poppies prevê a construção de quatro edifícios de uso misto, com 15 900 m2 de área residencial e 12 600 m2 para serviços, que vão estar ligados por uma central para o tratamento local de águas residuais com recuperação de recursos e geração de energia a partir de fontes renováveis. Para assegurar um balanço energético positivo, os edifícios vão dispor de um sistema de ventilação com recuperação de calor, controlo de CO2 e aquecimento de baixas temperaturas. Para evitar desperdícios, será instalado um dispositivo de recuperação de calor nos sistemas de água quente, assim como toda a iluminação será feita com tecnologia de elevada eficiência.

Por sua vez, o empreendimento Republica vai buscar inspiração nas “cidades-estado”, composto por seis edifícios com mistura de usos, incluindo um hotel e um edifício exclusivamente comercial. Na construção destes edifícios, o uso de materiais reciclados é, sempre que possível, um imperativo, o que aumenta o valor de sustentabilidade do projecto. No que toca à energia eléctrica, o Republica quer funcionar como uma smart grid. Para gerar electricidade, o empreendimento vai recorrer a painéis solares fotovoltaicos, armazenando o excedente em baterias e permitindo que essa electricidade possa, depois, ser trocada entre os edifícios.

Sendo o combate ao desperdício uma premissa, para além do sol, pretende-se aproveitar um outro recurso para gerar energia: as cozinhas do hotel e de algumas das habitações vão dispor de um sistema de trituração dos resíduos orgânicos, que serão, de seguida, encaminhados para a central, que os transformará em biogás. Nos vários edifícios, está também prevista a instalação de coberturas e fachadas verdes, de modo controlar a temperatura interior dos edifícios, evitando o sobreaquecimento, e, ao mesmo tempo, aproveitar as águas pluviais através de um mecanismo que colecta a água da chuva e a liberta, posteriormente, de forma controlada através de um sistema de fluxo inteligente. Com isto, é também possível conservar e promover a biodiversidade no local.

A implementação de redes eléctricas inteligentes está pensada nos dois empreendimentos, que, para isso, podem aproveitar as lições já aprendidas com a comunidade de energia de Ceuvel, que se localiza também neste distrito holandês. Estas smart grids vão ser testadas em alguns dos edifícios do Poppies e do Republica e vão ser usadas para controlar, simultaneamente, a produção, o armazenamento e o uso da electricidade localmente. Graças ao sistema de demand response, a gestão da rede pública poderá ser feita evitando os riscos dos picos de carga. Com a produção local e descentralizada de energia eléctrica de origem renovável, Buiksloterham terá, assim, a sua própria comunidade de energia. E o ATELIER tem ainda mais planos para o bairro holandês: a criação de uma plataforma de mercado energético. Com esta, os residentes e outros utilizadores vão poder comercializar a energia entre si ou até mesmo com outras comunidades ou fornecedores de energia eléctrica.

Em qualquer das cidades, farol ou seguidora, os objectivos do ATELIER não se resumem apenas ao edificado e às redes de energia. Em Amesterdão, também na mobilidade estão previstas várias intervenções, tendo como pano de fundo a ambição municipal de eliminar todas as emissões resultantes dos modos de transporte até 2030. Nesse sentido, o grande foco do ATELIER vai estar na mobilidade eléctrica, com a criação de uma plataforma de partilha de 15 a 20 carros eléctricos e de infra-estruturas para a partilha de e-bikes e de Biros (veículos eléctricos para pessoas com mobilidade reduzida).

Zorrotzaurre, a ilha de Bilbau

Na cidade espanhola, a intervenção vai acontecer na antiga área industrial de Zorrotzaurre. Nesta ilha (antigamente, uma península) em plena Ria de Bilbau está a ser preparado o maior projecto de regeneração urbana da cidade, com um plano de urbanização desenhado por Zaha Hadid.

Previstas estão cerca de 5500 novas habitações, 150 000 m2 de escritórios, 93 500 m2 de equipamentos culturais e sociais e ainda 154 000 m2 de espaço público. No âmbito do ATELIER, vão ser implementados três bairros de energia positiva em Zorrotzaurre, ligados entre si por um sistema que usa energia geotérmica e hidrotérmica. Este sistema não só vai fornecer calor aos edifícios que farão parte do projecto, mas espera-se que possa também alimentar outras áreas da ilha. Embora esta rede seja a principal inovação da experiência espanhola, há também intenções de desenvolver uma rede inteligente, com funções de demand response, e de apostar na produção de energia eléctrica via renováveis e respectivo armazenamento inteligente.

Zorrotzaurre, Bilbau, ©️ ZORROTZAURRE MANAGEMENT COMMISSION

No que se refere à mobilidade, está pensado que apenas veículos com zero emissões possam aceder à ilha, onde será possível encontrar infra-estruturas para o carregamento destas viaturas e a oferta de transportes públicos disponível será 100 % eléctrica. Como forma de levar a informação sobre esta transição energética aos cidadãos, os abrigos das paragens de autocarro vão disponibilizar dados sobre os fluxos de energia, níveis de produção renovável local e ainda de armazenamento.

De olho nas cidades farol

No decorrer do projecto, Matosinhos e outras cinco cidades europeias vão olhar com atenção para aquilo que será feito em Amesterdão e em Bilbau. Com uma dotação orçamental de cerca de 21,9 milhões de euros, a aplicação do projecto em Portugal dispõe de um financiamento comunitário superior a 541 mil euros e contempla diversas áreas de intervenção, incluindo o edificado.

A cargo da MatosinhosHabit estão 4 323 habitações distribuídas por 51 conjuntos habitacionais, num dos quais serão implementadas medidas para a criação de uma “área urbana positiva” no âmbito do ATELIER. Segundo Tiago Maia, embora alguns destes edifícios datem da década de 1960, anteriores à existência de legislação que impõe requisitos de desempenho energético aos edifícios, “ao longo dos últimos 20 anos, e muitas vezes recorrendo a projectos de financiamento europeu, o município de Matosinhos tem investido na requalificação do seu parque habitacional, priorizando a beneficiação energética dos edifícios”, o que tem contribuído para uma melhoria “significativa” da qualidade das habitações, assim como para uma poupança financeira para as famílias e autarquia, e ainda para uma economia ambiental.

Matosinhos ©MatosinhosHabit

O projecto pretende olhar também para a mobilidade no concelho, em particular no que se refere ao Corredor Verde do Leça, cujos primeiros sete quilómetros estão já em obra. O objectivo é “criar as condições de segurança e conforto para que, através da utilização dos meios suaves de transporte, se efectuem os movimentos pendulares diários entre as zonas residenciais de S. Mamede de Infesta e de Moreira da Maia, que ligam à zona empresarial da Via Norte, onde diariamente trabalham cerca de 10 mil pessoas”.

A complementar este Corredor Verde, está prevista, para 2021, a instalação de equipamentos de produção de energias renováveis (hídrica e solar) ao longo dos 18 quilómetros do percurso que servirão para abastecer o sistema público de iluminação existente no local. “Pretendemos utilizar os edifícios dos velhos moinhos e as infra-estruturas de apoio ao seu funcionamento (açudes), para, através de um projecto de reabilitação dos edifícios, fazer a instalação de equipamento que permita gerar energia eléctrica utilizando a força gravitacional da água do Rio Leça”, explica Tiago Maia. Para além disso, as empresas que se localizam na envolvente do Corredor vão instalar painéis solares fotovoltaicos nas suas coberturas e gerar electricidade para o seu próprio consumo.

O ATELIER decorre até Outubro de 2024 e junta 30 entidades parceiras de 11 países, incluindo institutos, universidades, municípios e parceiros tecnológicos. No caso português, para além do município de Matosinhos, a iniciativa conta ainda com a participação da agência de energia do Porto, AdEPorto.