Com a utilização de electricidade gerada por fontes renováveis a ultrapassar a do gás fóssil e do carvão em 2022, e com o declínio contínuo dos pagamentos de energia, será seguro dizer que a crise energética europeia chegou ao fim?
Embora o aumento da inflação, a volatilidade dos preços de mercado e a generalizada insegurança energética – desencadeada pela invasão injustificada da Ucrânia pela Rússia há mais de um ano – estejam a abrandar, não é altura de a Europa pôr o pé no travão. As consequências da crise energética ainda estão a repercutir-se nas casas e nas comunidades, para além de terem revelado vários pontos fracos do continente. Felizmente, esta crise tem também um lado positivo: a Europa tem a oportunidade de realizar uma transição energética sustentável, equitativa e justa.
À frente desta transição, encontram-se os líderes locais: autoridades públicas, comunidades unidas, cidadãos e pequenas empresas. Em toda a Europa, os intervenientes locais já estão a enfrentar a crise energética multifacetada, abordando a questão da propriedade da energia, da pobreza, da transparência dos dados e da inovação. Apesar da descida dos preços da energia nos últimos meses e do facto de as exportações russas por gasoduto terem diminuído de 40 % para 7 % do abastecimento de gás da União Europeia (UE), o aumento das taxas de pobreza energética, as preocupações ambientais e a incerteza do sector fazem prever dificuldades para o futuro
Partes interessadas locais lideram a transição energética
Para chegar à raiz do problema, a Europa tem de olhar para além das medidas de curto prazo. Felizmente, não precisamos de ir à procura muito longe. Muitos projectos à escala europeia, a nível local e regional, estão a promover soluções pioneiras para abordar diferentes aspectos da crise energética, para além de diversificarem e reforçarem a carteira energética da Europa. Para atingir o objectivo da UE de uma quota de 70 % de energias renováveis na electricidade até 2030, as acções lideradas pela comunidade devem, e estão, a trabalhar para promover uma apropriação mais equitativa da energia (projecto DECIDE), protegendo e capacitando os mais vulneráveis contra custos elevados contínuos (PowerPoor), optimizando a produção de energia térmica (Act!onHeat) e incentivando a transparência dos dados e a inovação para todos (MATRYCS).
Ao explorar soluções energéticas locais e aproveitar as acções existentes, a Europa pode garantir o fim da actual crise energética, evitando também que choques semelhantes afectem as pessoas e as empresas no futuro.
Assumir a nossa parte: comunidades de energia e acções colectivas de energia
Por que razão é a propriedade da energia tão importante? E como pode reforçar a transição da Europa?
De acordo com Silvia Assalini, responsável pela política climática do ICLEI Europa, também envolvida no DECIDE – um projecto Horizonte 2020 que visa compreender melhor como são criadas comunidades de energia e acções colectivas de energia (AEC) –, a propriedade da energia equivale ao poder de decisão. “A propriedade da energia implica a possibilidade de tomar decisões, ao mesmo tempo que se está muito consciente da responsabilidade que lhe está associada. Durante os piores momentos da crise energética que a Europa enfrentou, tornou-se clara, a todos os níveis, a importância de direccionar a conversa para a produção, distribuição, etc., de energia e para as consequências de se estar dependente de outros numa questão tão crucial. A propriedade permite-nos intervir quando consideramos necessário; assegura o equilíbrio, por exemplo, protegendo os mais vulneráveis e garantindo os serviços”, disse Silvia Assalini.
Nos últimos três anos, projectos-piloto na Áustria, na Bélgica, na Estónia, na França, na Alemanha, na Grécia e nos Países Baixos reforçaram a tentativa do DECIDE de alargar o apoio à participação dos cidadãos da UE em AEC, incluindo as comunidades de energia. Com base na experiência do projecto, as AEC podem desempenhar um papel fundamental na aceleração de transições energéticas que sejam inclusivas, aumentando simultaneamente a adopção de tecnologias energéticas limpas.
Por exemplo, como parte da iniciativa DECIDE, a OurPower, uma cooperativa de energia emergente na Áustria, está a desenvolver um mercado peer-to-peer para a electricidade proveniente de fontes de energia renováveis. A cooperativa acredita na criação de um mundo onde as pessoas possam interagir de forma responsável com as suas fontes de energia e onde 100 % da electricidade provenha de fontes de energia renováveis regionais. A OurPower junta aqueles que desejam comprar electricidade renovável com aqueles que a produzem e desejam vender o excedente. A cooperativa centra-se na capacitação de proprietários privados com telhados solares fotovoltaicos e comunidades de cidadãos responsáveis pelos serviços de correspondência em linha, para além de supervisionar todo o processo de fornecimento e facturação de electricidade. Desde 2019, a cooperativa ganhou mais de 778 membros e ajudou a localizar as energias renováveis, mesmo durante o período tumultuoso que se seguiu à invasão da Ucrânia pela Rússia.
As AEC são fundamentais para o êxito da visão europeia de energia sustentável. Alargar a propriedade às empresas e pessoas locais, envolver directamente os cidadãos nas decisões energéticas que os afectam e dar prioridade às fontes de energia renováveis são caminhos para proporcionar aceitação e resiliência. Trata-se também de um passo fundamental para garantir a inclusão de todos na transição energética.
Atenuar a pobreza energética para criar comunidades resilientes
Na sua tentativa de iniciar uma transição para as energias renováveis e sustentáveis o mais rapidamente possível, a Europa não deve esquecer-se de abordar os factores subjacentes à crise energética, bem como os impactos desiguais desta nos grupos vulneráveis.
Na região da Ática, na Grécia, uma comunidade de energia decidiu ir além da propriedade local para garantir a inclusão de todos os membros da comunidade. No âmbito do projecto PowerPoor, que apoia esquemas para cidadãos com carências energéticas e promove a utilização de financiamento alternativo, a presidente da comunidade obteve a certificação de “Apoiante e Mentor de Energia” e utilizou o kit de ferramentas PowerPoor para visitar famílias locais e avaliar a vulnerabilidade nos subúrbios do norte de Atenas.
Ao mesmo tempo, uma comunidade energética de 230 pessoas na ilha de Creta procurou reabilitar e apoiar os habitantes da aldeia de Arkalohori, que foi atingida por um terramoto em 2021. A iniciativa PowerPoor organizou uma formação no local para a comunidade minóica, que tinha como objectivo envolver os cidadãos pobres em termos energéticos e propor medidas flexíveis para aumentar a eficiência energética e reduzir os custos de energia.
No total, mais de 52 municípios estão envolvidos no projecto PowerPoor e 17 deles criaram gabinetes locais de combate à pobreza energética, incluindo em Tallinn (Estónia), Zagreb (Croácia), Sófia (Bulgária), Salónica (Grécia) e Jelgava (Letónia). Os “Apoiantes e Mentores de Energia” são um ponto fulcral da abordagem do PowerPoor, uma vez que fornecem orientação comunitária de confiança e lidam directamente com agregados familiares vulneráveis. No entanto, como refere Arthur Hinsch, responsável pela política climática e energia do ICLEI Europa, que trabalha no âmbito do PowerPoor, o alívio e a redução da pobreza energética vão para além da “energia”. “Atenuar a pobreza energética não é apenas uma questão de energia, mas também uma questão sistémica na medida em que exige uma acção a vários níveis de governação em diferentes sectores. Também está associada a medidas destinadas a aumentar a utilização de energias renováveis em geral, o que, se for feito de uma forma local e inclusiva, por exemplo, através de comunidades de energia e da partilha de energia, pode facilitar a redução dos preços da energia para aqueles que se debatem com custos elevados.”
Combater a insegurança e a pobreza energéticas significa proteger-se contra choques de preços – como os registados nos dois últimos Invernos – e promover uma mudança no sistema que apoie a produção e a distribuição local de fontes de energia renováveis.
Optimizar as tecnologias energéticas para fazer avançar a transição energética
Revolucionar a transição energética a partir do zero ajudará a Europa a evitar crises semelhantes, talvez inevitáveis, provocadas pelas alterações climáticas ou pela instabilidade política, protegendo simultaneamente os mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, a optimização das tecnologias energéticas não pode ser negligenciada. Uma área em que isto é especialmente urgente é a do aquecimento e arrefecimento dos edifícios, partilha Julen Imana, responsável pela energia no ICLEI Europa, que trabalha no projecto Act!onHeat do Horizonte 2020.
“Optimizar a produção de energia na Europa, em especial no domínio do aquecimento e arrefecimento, que representam metade do consumo de energia, é fundamental para a nossa transição energética. O aumento da eficiência energética e a integração de fontes de energia renováveis nos sistemas de aquecimento e arrefecimento reduzirão o consumo global de energia e diminuirão a dependência dos combustíveis fósseis e dos seus preços voláteis. Ao abandonar os sistemas de aquecimento baseados em combustíveis fósseis, a Europa reduzirá as suas emissões de gases com efeito de estufa e a sua dependência da energia importada, tornando-se mais resistente em face de futuras crises energéticas”, diz Julen Imana.
Actualmente, a UE desperdiça 2 860 TWh de calor por ano. Isto equivale a 11 mil milhões de barris de petróleo ou a 650 mil milhões de metros cúbicos de gás natural. De facto, o aquecimento e a refrigeração, como salienta Julen Imana, representam mais de metade das necessidades energéticas totais da Europa, sendo que 75 % ainda dependem dos combustíveis fósseis. Esta dependência foi fortemente sentida durante o pico da crise energética, durante o qual muitas famílias europeias foram expostas a temperaturas extremas.
O Act!onHeat tem como objectivo apoiar os governos locais e regionais no desenvolvimento de políticas baseadas nas melhores práticas e de ferramentas de análise open-source capazes de concretizar a mudança rápida na Europa. Ao disseminar esta informação e ao trabalhar directamente com as cidades através do seu Mecanismo de Apoio, o projecto está a ajudar a tornar a optimização da energia térmica um lugar-comum.
Em Zelzate (Bélgica), por exemplo, o Mecanismo de Apoio ajudou o município a compreender como aquecer o maior número possível de edifícios ligados dentro de um orçamento atribuído. Entretanto, a Agência Estatal de Energia de Hessen (Alemanha) convidou os seus municípios a participarem num workshop organizado por peritos do Mecanismo de Apoio sobre a forma de desenvolver um plano de aquecimento local. O Centro de Investigação para a Energia e o Desenvolvimento Sustentável na Macedónia também recorreu à capacidade de inovação dos peritos do Act!onHeat para criar um inventário de dados de aquecimento e arrefecimento disponível para utilização dos municípios macedónios para que desenvolvam estratégias locais.
A optimização da produção e da eficiência energéticas em áreas como a saúde e a educação, os edifícios, os transportes, etc. é fundamental para fazer avançar a transição energética sustentável da Europa. Tornar os dados e as soluções transparentes e mais prontamente disponíveis é o próximo passo para facilitar uma transição holística e preparar o futuro para crises.
Transparência dos dados e inovação energética
Assegurar que soluções energéticas optimizadas são exequíveis e reproduzíveis deve ser uma pedra angular da transição energética da Europa. No entanto, a replicabilidade representa frequentemente um desafio para muitos actores locais devido à falta de recursos, de financiamento e, a nível europeu, de transparência e disponibilidade de dados.
A iniciativa MATRYCS está a romper com a análise tradicional e a partilha de dados ao fornecer análises inovadoras de todo o ciclo de vida dos edifícios – desde o fabrico, até à operação e à manutenção. Com os edifícios a representarem uma fatia impressionante de 40 % do consumo de energia da UE, é essencial adoptar tecnologias de ponta e tirar partido dos dados mais recentes para melhorar a eficiência energética.
Tal como se verificou durante o pico da crise energética, o consumo de energia dos edifícios representou um dos maiores desafios para as pessoas, as empresas e os governos. Em 2019, quase 40 % dos agregados familiares europeus utilizavam uma caldeira a gás. Apenas dois anos mais tarde, em 2021, 83 % do gás natural da UE era importado da Rússia. A renovação e a construção inteligentes irão atenuar os efeitos da crise energética e ajudar a UE a alcançar a independência energética.
De acordo com Marcelo Lampkowski, responsável por recursos sustentáveis e resiliência climática no ICLEI Europa, que trabalha no projecto MATRYCS, existem várias formas de os governos locais e as partes interessadas poderem tirar partido dos dados dos edifícios para melhorarem a eficiência energética. “Para melhorar a eficiência energética dos edifícios e promover políticas climáticas, os governos locais podem colaborar com várias partes interessadas, como proprietários de edifícios, empresas de serviços públicos, empresas de serviços energéticos e associações industriais. Ao trabalharem em conjunto, as autoridades municipais e as partes interessadas recolhem dados valiosos sobre o consumo de energia, que podem depois ser analisados e utilizados para identificar oportunidades de poupança de energia”, explica.
A caixa de ferramentas MATRYCS serve de modelo para este tipo de cooperação, visando quatro áreas-chave, incluindo a monitorização do desempenho energético dos edifícios, o desenvolvimento de infraestruturas de construção e a “redução do risco” do investimento. O modelo está a ser validado através de 11 projectos-piloto de grande escala e os parceiros já estão a experienciar um melhor desempenho energético quando utilizam o serviço relacionado com “capacidade de previsão da procura de energia”. Um bom exemplo está em Lisboa (Portugal), onde uma cooperativa de energias renováveis está a utilizar a caixa de ferramentas MATRYCS para prever a produção fotovoltaica a curto prazo em comunidades energéticas locais.
Embora seja óptimo ver acções implementadas a nível local, também é necessário apoio a partir de cima, sublinha Lampkowski ao dizer o seguinte: “a UE deve prestar assistência financeira, sob a forma de subvenções e empréstimos, aos governos locais e às partes interessadas para projectos relacionados com a eficiência energética, bem como incentivar o intercâmbio de conhecimentos e implementar programas de capacitação que ampliem as histórias de sucesso e as melhores práticas nos Estados-Membros da UE e inspirem novas iniciativas”.
Ainda sob perigo
Os últimos anos obrigaram a Europa a enfrentar uma dura realidade: não ter controlo sobre a produção, os recursos e os custos da energia tem impacto nas pessoas, na economia e no planeta. Embora muitas das consequências mais nefastas da crise energética tenham diminuído, ainda não estamos fora de perigo.
Os líderes locais estão a dar grandes passos em frente para garantir que abordam cada aspecto da crise energética e da transição de forma holística. Isto inclui a abordagem da propriedade da energia, da pobreza, da optimização, da inovação e da analítica – todos elementos que foram extremamente subestimados antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. A probabilidade de uma crise semelhante, causada pela instabilidade política ou pela degradação ambiental, “espreita” ameaçadoramente nas linhas laterais. Da próxima vez, a Europa tem de estar preparada. Ao investir e apoiar soluções locais em curso à escala nacional e internacional, a Europa pode contribuir para atenuar os riscos futuros, diminuir os efeitos da crise actual e apoiar os esforços em matéria de clima.
Artigo publicado originalmente na edição de Julho/Agosto de 2023 da Edifícios e Energia
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.