O município transmontano de Chaves está a finalizar a maior rede urbana de calor geotérmico em Portugal Continental, que vai distribuir energia térmica a 24 edifícios públicos e privados da zona histórica. Cinco já demonstram as vantagens económicas e ambientais do projecto flaviense, enquanto os restantes vão começar a fazê-lo em breve.
Numa das cidades portuguesas com as temperaturas mais baixas do país durante o Inverno, ter águas que brotam da Terra a 76 graus Celsius (ºC) é mais do que uma bênção. É uma autêntica oportunidade. Na antiga Aquae Flaviae, os romanos já as utilizavam com fins termais, mas agora, mais de dois mil anos depois, chegou a altura de Chaves tirar partido máximo das propriedades geotérmicas locais.
A construção da nova rede arrancou em Janeiro de 2021, embora o aproveitamento do calor geotérmico para edifícios na cidade tenha começado nos anos 80 do século passado, nomeadamente nas piscinas municipais e no complexo termal. Este aproveitamento da água com vista à administração de tratamentos termais obrigava, devido à elevada temperatura, a um arrefecimento prévio do recurso hídrico. Para isso, recorria-se a energia eléctrica que alimentava uma torre de arrefecimento, o que no final do mês correspondia a uma factura superior a três mil euros, só para esse fim.
A solução encontrada para melhorar a situação foi utilizar um permutador principal, instalado numa central geotérmica, que tanto permite arrefecer a água das termas como aquecer a água da rede. Através de um circuito fechado de distribuição, há vários anos que esta última segue para cinco grandes edifícios da cidade: o balneário termal, as piscinas municipais, o Hotel Premium (Aquae Flaviae), a Residencial geriátrica Nova Geração e o Hotel Ibis Styles Chaves.
Uma vez que as três captações de água disponíveis (AC1, AC2 e CC3) apresentam um potencial energético de 3,3 MW de potência térmica (ver Tabela 1), facilmente se constatou que a rede inicial estava subdimensionada, e, por isso, decidiu-se expandi-la para outros locais do centro histórico. Assim, foi construída uma nova rede com dois mil metros de condutas subterrâneas que permite levar calor (água a 65 ºC) até mais 19 edifícios. Entre eles estão, por exemplo, a Biblioteca Municipal, o Lar Residencial da Santa Casa da Misericórdia, o Hotel Petrus, o tribunal, o Edifício dos Paços do Concelho, o edifício Paço do Duque de Bragança e o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso.
A pandemia e a descoberta de achados arqueológicos no centro histórico da cidade atrasaram a conclusão dos trabalhos, cujo projecto tem um investimento de um milhão e duzentos mil euros, comparticipado por fundos comunitários. Mas, nesta altura, a rede de distribuição já está totalmente concluída, o que irá permitir colocar o sistema em funcionamento em breve, provavelmente até ao fim deste ano.
Joaquim Esteves, engenheiro mecânico de formação e responsável pelo funcionamento e pela manutenção dos diferentes equipamentos, adiantou à Edifícios e Energia que apenas se aguarda a instalação dos permutadores secundários nos edifícios. “Estes são essenciais para aquecer a água que chega aos edifícios em circuito fechado. Ou seja, cada edifício apenas consome água da rede – não a termal, utilizada exclusivamente para os tratamentos das termas –, e, em vez de a aquecer através de uma caldeira convencional, a gás ou a gasóleo, irá fazê-lo por via do seu permutador”, explicou o técnico, que trabalha com Brigite Bazenga, administradora da empresa municipal de gestão de equipamentos do município de Chaves.
Quando toda a rede de district heating de Chaves estiver operacional, arrancará o ensaio de um projecto-piloto, que deverá ter um período de avaliação de cinco anos. E como serão feitas a contabilização individual da energia consumida e a monitorização das condições de utilização? “Para isso, serão instalados sistemas que permitem a medição do caudal consumido, assim como das temperaturas de ida e retorno, através de um contador de entalpia, que não é mais do que um contador de água com duas sondas de temperatura, permitindo transformar o valor em KWh”, acrescentou Joaquim Esteves. Certa é a intenção da autarquia em cobrar ao utilizador um valor muito abaixo do preço tradicional de forma a impulsionar a economia local e a descarbonização do território.
Poupança e retorno O município de Chaves tem uma factura energética anual a rondar os três milhões de euros (entre iluminação pública e consumo dos edifícios) e a energia geotérmica poderá vir a representar uma poupança de 200 mil euros/ano. Além disso, a autarquia também terá retorno financeiro com o fornecimento aos consumidores. |
Quais as vantagens?
De acordo com os estudos efectuados pela câmara municipal, que tiveram em consideração os consumos médios de energia para aquecimento ambiente e aquecimento de águas sanitárias do conjunto de edifícios, a nova rede geotérmica poderá significar uma poupança total superior a 600 mil euros por ano (só o município reduz 200 mil euros/ano). Esta diz respeito à substituição das anteriores fontes de energia fóssil, sobretudo gás natural e gasóleo.
Além de ajudar a reduzir os gastos energéticos e a aumentar o conforto térmico dos utilizadores, o projecto apresenta também uma grande importância ambiental, já que se estima uma redução superior a 1 400 toneladas de dióxido de carbono por ano. “Queremos contribuir não só para a descarbonização, e isso é um papel importante [a desempenhar], mas também para podermos ter uma fonte de energia mais sustentável e, sob o ponto de vista financeiro, mais atractiva”, disse à agência Lusa o presidente da câmara de Chaves, Nuno Vaz, em finais do ano passado.
Além de ser 100 % limpa, a energia geotérmica em Chaves é também auto-sustentável e 100 % renovável, uma vez que as três captações de água se reenchem naturalmente, caso não sejam ultrapassados os caudais permitidos. De acordo com Joaquim Esteves, o compromisso ambiental é também a principal razão para não se utilizar a energia geotérmica como fonte para a produção de energia eléctrica: “Nós temos a água a 76 ºC e o [nível de temperatura] ideal para essa produção [eléctrica] é a partir dos 100 ºC. Aqui, até seria possível – e mesmo rentável – atingir esse valor através da queima de combustíveis fósseis, mas não é isso que o município quer, porque a ambição sempre foi a de criar um projecto de grande valor ambiental.”
Do piso radiante e chillers às piscinas e lavandarias
Nesta rede de Chaves, a energia geotérmica tem uma utilização final em diversas aplicações. Uma delas é o aproveitamento do calor em sistemas de piso radiante, como já acontece, por exemplo, com o Hotel Ibis Styles Chaves, que também recorre ao calor gerado para aquecer as águas sanitárias. Antes de abrir, em 2019, a unidade realizou obras no edifício e aproveitou para fazer a adaptação à rede, além de ter construído um ramal de ligação às termas. O resultado imediato é uma poupança energética na ordem dos 25 a 30 %.
Já o Hotel Petrus faz parte da lista de edifícios que se junta à rede na segunda fase do projecto. À Edifícios e Energia, o director e proprietário, Pedro Teixeira, revelou que a unidade vai começar por utilizar o novo sistema para o aquecimento de águas sanitárias e da piscina interior, mas que também já está a projectar a instalação de chillers com soluções de arrefecimento e aquecimento para diversos espaços. À data da entrevista, ainda não tinha uma estimativa da poupança energética (aguardava pelo valor das tarifas, definido pela autarquia), mas acreditava que poderia chegar aos 50 %. Arquitecto de formação, Pedro Teixeira elogia a instalação da rede e defende que esta também deveria chegar às habitações particulares: “eu já digo há muitos anos que toda a zona histórica deveria beneficiar deste sistema, porque seria uma grande mais-valia para uma parte da cidade algo despovoada. Este já foi um projecto interessante e bom, mas , uma vez que temos uma dádiva da Terra tão grande, podíamos utilizá-la muito mais”.
A autarquia já admitiu ter a ambição de fornecer energia aos consumidores domésticos, caso a utilização sustentável do recurso e as verbas disponíveis permitam ampliar a rede, embora afirme que esse investimento não está, por enquanto, no horizonte. Ainda assim, já se estão a estudar outras possíveis captações de água.
Várias unidades hoteleiras também tiram partido da rede para utilização nas lavandarias e o mesmo acontece no complexo das Termas de Chaves. “Lá, existe uma lavandaria de grandes dimensões, que chega a lavar mil quilos de roupa por dia, sendo que a água já entra quente nas máquinas. Assim, o seu único consumo eléctrico é para a rotação dos motores, o que ajuda a poupar tempo e energia”, afirma Joaquim Esteves.
Os casos de São Pedro do Sul e dos AçoresAlém de Chaves, também São Pedro do Sul tem procurado apostar na energia geotérmica, tirando partido das águas que por lá brotam a 67,9 ºC. Neste momento, já existe uma pequena rede de distribuição de calor que faz o aquecimento ambiente e de águas sanitárias de dois hotéis junto às termas, ao mesmo tempo que se desenvolve um novo projecto, mais ambicioso, para a criação de uma rede de distribuição que chegará a 16 edifícios (14 hotéis e dois balneários termais). Em entrevista à Edifícios e Energia, o presidente do conselho de administração das Termas de São Pedro do Sul, Victor Leal, adiantou que os trabalhos estão a decorrer a bom ritmo: “Toda a parte das condutas de distribuição já foi colocada e agora estamos a trabalhar na construção da central, por isso, esperamos que o projecto esteja em total execução até ao final do ano”. Este consiste em 16 linhas independentes, com dois circuitos (um de ida e o outro de chegada), pelo que cada um dos utilizadores terá uma linha dedicada própria que depois se vai interceptar na central, responsável pela distribuição do calor. Enquanto presidente da direcção da Associação das Termas de Portugal, Victor Leal falou, no final de Julho, sobre este tema com a secretária de Estado da Energia, Ana Fontoura, realçando a importância do aviso que permitiu financiar Chaves e São Pedro do Sul. Já na altura houve outros candidatos, “nomeadamente Caldas da Rainha e Carvalhal, mas existem mais interessados nesta área, nomeadamente Gerês, Alcafache ou Aregos”. Também por isso, durante o encontro, Victor Leal procurou sensibilizar a governante para a abertura de um novo concurso que possa apoiar outros projectos geotérmicos em mais estâncias termais do país. Nos Açores, a geotermia é explorada há mais de três décadas, mas, neste caso, o clima moderado do arquipélago não justifica uma utilização para aquecimento. Juntando esse facto a um grande potencial energético, optou-se pela produção de energia eléctrica gerada a partir de três centrais geotérmicas. Duas ficam na ilha de São Miguel, a da Ribeira Grande (16,6 MW) e a do Pico Vermelho (13 MW), enquanto na ilha Terceira há outra de menor potência (4,7 MW), situada no Pico Alto. Em conjunto, são responsáveis por mais de 23 % das necessidades energéticas dos Açores. |