Não se trata de numerologia, mas o número “2 000” pode ter um papel mais importante do que se pensa num mundo mais sustentável. A Sociedade dos 2 000 Watt propõe que cada um de nós consuma apenas essa potência continuamente, sem ter de comprometer a qualidade e o conforto da vida moderna. Será possível? A Suíça diz que sim.
Para os europeus, reduzir o uso de energia, nomeadamente a de origem fóssil, é, hoje, mais urgente do que nunca. A guerra na Ucrânia, desencadeada por um dos maiores países exportadores de combustíveis fósseis do mundo, juntou recentemente questões geopolíticas e de segurança internacional às preocupações ambientais que a crise climática tem vindo a pôr a descoberto. Marcadas pelas circunstâncias actuais, estas inquietações estão na ordem do dia, no entanto, a situação não é nova e desde a crise energética dos anos 1970 que se tenta encontrar modelos que lhes dêem, de algum modo, resposta. Foi nesse contexto que, na Suíça, se começou a esboçar, nas décadas de 1980-90, uma nova visão de desenvolvimento sustentável: a Sociedade dos 2 000 Watt.
Desenvolvido pelo Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETHZ, na sigla em inglês), o conceito defende que cada pessoa precisa de apenas 2 000 Wh de energia primária para viver, sem abdicar de conforto e de qualidade de vida. O número “mágico” – que corresponde a um consumo anual de cerca de 17 500 kWh de electricidade ou o correspondente a 1 700 litros de petróleo – é entendido como sendo uma média aproximada do consumo de energia per capita a nível mundial e é também aquele que, segundo o ETHZ, representa a quantidade de energia contínua disponível no mundo para cada pessoa, o que permitiria a todos os seres humanos um acesso equitativo aos recursos do planeta.
O número tem também um quê saudosista, isto porque, em 1960, a Suíça era, efectivamente, uma “sociedade dos 2 000 Watt”. Quatro décadas de progresso económico e tecnológico desequilibraram esta balança e, no início do novo milénio, o consumo de energia per capita dos suíços estava já longe dessa marca, na casa dos 5 000 Wh. Materializar o conceito exigiria reduzir em cerca de dois terços o consumo de energia do país. Um compromisso difícil, mas, apesar disso, a Suíça decidiu aceitar o desafio, convicta de que a tecnologia e o conhecimento para o efeito estão disponíveis. O conceito passou a ser visto como um objectivo a longo prazo, para ser alcançado entre 2050 e 2100, e ao qual se juntou, mais recentemente, a ambição de reduzir as emissões anuais para uma tonelada de CO2 por pessoa.
O que são estes 2 000 Watt e como se alcançam?
Segundo o modelo desenvolvido pelo ETHZ, cada pessoa pode viver confortavelmente usando apenas 2 000 Wh de energia primária. Tendo em mente que cada Watt de energia corresponde a 1 Joule por segundo, é possível converter o objectivo num número para o uso de energia num ano, explica o estudo Intermediate steps towards the 2000-Watt society in Switzerland: an energy-economic scenario analysis. “Assumindo 365,25 dias por ano (incluindo o ano bissexto), [a utilização contínua de] 2 000 W corresponde a 63,1 GJ per capita por ano”, lê-se no texto – (2000 x 365,25 x 24 x 60 x 60).
Tendo o objectivo definido, há, então, que criar estratégias para o alcançar. Os helvéticos fizeram o trabalho de casa e identificaram três eixos que permitem trilhar esse caminho. O primeiro é a eficiência do uso de recursos, em particular de energia – usar menos para o mesmo fim, não comprometendo assim o conforto da vida moderna. Depois, a consistência – e tal significa usar recursos de fontes renováveis em vez de outros não renováveis, utilizar tecnologias amigas do ambiente e promover a reutilização e a reciclagem dos recursos. Por fim, suficiência, que se traduz em “usar menos para uma melhor qualidade de vida”. Combinar todas as estratégias, dizem os suíços, é a chave para atingir os objectivos da Sociedade dos 2 000 Watt, cabendo a todos os indivíduos e entidades, públicas e privadas, essa tarefa.
Perante a realidade, a ideia pode parecer simplista e, por isso, vista por muitos como utópica, já que o seu sucesso depende não só de muitos cálculos, mas também de variáveis pouco controláveis, como são os comportamentos de cada um. Ainda assim, este é um tema que, na Suíça, é visto com seriedade. Desde a sua criação, a proposta trazida pela Sociedade dos 2 000 Watt encontrou expressão em algumas das medidas e estratégias de sustentabilidade desenvolvidas no país, tanto a nível nacional, como regional e municipal. Em 2008, a cidade de Zurique, por exemplo, decidiu, como objectivo, reduzir o consumo de energia por pessoa para os 2 000 Wh, tornando, assim, pela primeira vez, oficial o compromisso de uma entidade governamental com a visão. A nível nacional, o modelo é uma das prioridades de investigação identificadas para o período de 2021-2024 pelo Gabinete Federal de Energia Suíço (SFOE, na sigla em inglês), no que se refere à energia em edifícios e cidades.
Quando a visão passa a ser uma ferramenta para a sustentabilidade
A adaptação do conceito tem sido particularmente interessante para projectos de desenvolvimento urbano e materializou-se, inclusivamente, num sistema de certificação voluntário para áreas urbanas com uma ferramenta de cálculo própria – o 2000-Watt-Area (no nome original). O mecanismo foi desenvolvido pelo programa EnergieSchweiz, do SFOE, e classifica a sustentabilidade dos projectos urbanos ao longo do seu ciclo de vida, avaliando parâmetros relacionados com qualidade do edificado, densidade, mistura de usos e mobilidade, numa lógica alinhada com aquilo que são os princípios da Sociedade dos 2 000 Watt. “A ideia central é um processo de avaliação contínuo da sustentabilidade de uma área [urbana] em termos de energia nas fases de desenvolvimento, planeamento, implementação e operação”, explica o portal oficial do 2000-Watt-Area.
Actualmente, existem, na Suíça, 43 áreas urbanas com esta etiqueta de sustentabilidade (26 referentes a projectos “em desenvolvimento”; 11 a áreas “em operação” e outras seis para iniciativas de “transformação” de zonas existentes). Para receber este selo, cada uma delas teve de aproveitar, pelo menos, 50 % do seu potencial para alcançar os princípios da Sociedade dos 2 000 Watt e terá sido avaliada com base em seis critérios – sistema de gestão; comunicação, cooperação e participação; usos e planeamento urbano; fornecimento de recursos e eliminação de resíduos (incluindo, aqui, a energia); edificado; mobilidade (incluindo promoção da mobilidade suave, dos transportes públicos e da intermodalidade).
No caso dos edifícios, o processo de certificação tem em consideração o seguinte: a rentabilidade económica do projecto, olhando para os custos ao longo ciclo de vida; a estratégia adoptada, nomeadamente no que se refere aos procedimentos para a selecção dos projectos, assegurando que são escolhidas soluções óptimas na relação arquitectura/urbanismo, funcionalidade, rentabilidade económica e energia/ambiente; as normas construtivas adoptadas, exigindo-se a escolha daquelas com elevados requisitos ambientais e de desempenho energético; e a densidade de uso, com a aposta num perfil “moderado”, recorrendo, para isso, à flexibilidade de usos e a instrumentos de controlo (por exemplo, regras de ocupação), e suportando, assim, as exigências da visão proposta pela Sociedade dos 2 000 Watt. Os certificados são válidos por determinado período de tempo e devem ser renovados, de modo a verificar-se que os projectos continuam em linha com os requisitos propostos.
Erlenmatt West: um caso prático
Situado na zona Norte de Basileia, Erlenmatt West é um projecto urbanístico recente numa área de 25 mil metros quadrados (m²), que era, anteriormente, um posto de mercadorias ferroviário, entretanto, fora de uso. O bairro, que havia já sido certificado na fase de “desenvolvimento”, foi um dos primeiros a receber o selo 2000-Watt-Areal “em operação” em 2017, tendo revalidado essa etiqueta no ano passado.
Composta por edifícios de uso misto (incluindo 574 apartamentos, um centro de dia, uma escola primária, uma creche e 2 000 m² de espaços comerciais), construídos segundo a norma Minergie, os residentes de Erlenmatt West usam energia de origem 100 % renovável. O bairro é abastecido, para fins de aquecimento (ambiente e águas quentes sanitárias), por uma rede de distribuição de calor (para a qual se faz a valorização energética de resíduos, biomassa e outras matérias biogénicas). Já a electricidade provém 96 % de fontes hídricas e 4 % de solar, sendo adquirida à Industriellen Werken Basel, que assegura a produção local de energia verde.
Além de ser uma área bem servida por transportes públicos, a mobilidade suave é praticamente um requisito, uma vez que a zona é “livre de carros”, o que permite que as crianças possam brincar em segurança nas ruas. Apesar disso, existem também pontos de carregamento para veículos eléctricos.
Não é só na Suíça que a Sociedade dos 2 000 Watt encontra adeptos. Nos Estados Unidos, esta visão ganhou forma e existe um movimento para tornar Minneapolis na primeira cidade norte-americana a implementar os princípios.
Os princípios da Sociedade dos 2 000 Watt estão também presentes no bairro através de uma associação local, a Sociedade dos 2 000 Watt Erlenmatt West. Além disso, um grupo de dez embaixadores, composto por residentes e membros da associação, é responsável por promover a vida comunitária, organizando eventos e actividades que estimulem a componente social local e, consequentemente, a qualidade de vida no longo prazo. Existe ainda uma aplicação móvel que promove a sustentabilidade social do bairro, ao facilitar o contacto e a partilha entre os vizinhos. A Erlenapp foi desenvolvida por uma spin-off do ETHZ, a Losinger Marazzi, e foi reconhecida internacionalmente como uma prática inovadora com o prémio Innovation World Cup 2015, na categoria “Connected Home”, durante o evento internacional Mobile World Congress desse mesmo ano.
Aquando da revalidação da certificação 2000-Watt-Area, o bairro de Erlenmatt West registava um aproveitamento de 79 % do seu potencial, sendo o critério da densidade de usos o mais bem classificado (perto de 100 %) e o dos edifícios aquele que apresentava uma margem maior de melhoria para o futuro (com um resultado entre os 50 % e os 75 %).
Mudanças à vista
Embora entendida como instrumento para o desenvolvimento urbano mais sustentável pelas autoridades suíças, a certificação 2000-Watt-Area vai sofrer alterações muito em breve. Em meados de Março passado, foram anunciadas mudanças, a nível nacional, com vista a “simplificar a construção e o planeamento urbano”.
As associações que promovem os mecanismos de certificação de edifícios usados pelos cantões suíços – GEAK, Minergie e SNBS Hochbau – e o SFOE, responsável pelo 2000-Watt-Area, vão passar a trabalhar em conjunto, num “redesenho e harmonização” destas ferramentas, passando a haver apenas uma entidade responsável pela emissão, inspecção, comunicação e formação da família de certificados helvética. As alterações terão efeito o mais tardar em 2024, sendo que a etiqueta para áreas urbanas cujo nome ganhou inspiração na visão para a Sociedade dos 2 000 Watt dará, a partir daí, lugar a dois novos selos: o Minergie-Areal e o SNBS-Areal.
“O parque imobiliário sustentável é um grande contributo para a protecção climática. A tendência é positiva, mas o potencial está longe de ser esgotado. Ao reunir os recursos da família de certificação de edifícios, podemos alcançar um impacto muito maior. As etiquetas complementam-se, são mais bem coordenadas entre si e os promotores e planeadores podem descobrir mais facilmente qual o selo que responde às suas necessidades”, justificou, em comunicado, o presidente da associação Minergie, Marc Mächler.
Fotografia de destaque © Office Fédéral de l’Énergie OFEN
Artigo publicado originalmente na edição de Maio/Junho de 2022 da Edifícios e Energia, rectificado a 18/08/2022, de modo a clarificar a referência a Watt como uma unidade de potência.