Autores: Manuela Almeida e Daniel Reis, Universidade do Minho
À medida que a eficiência energética dos edifícios aumenta, a energia incorporada nos materiais ganha cada vez mais relevância. Torna-se, por isso, necessário ser cada vez mais seletivo na escolha dos materiais a utilizar nas soluções construtivas de edifícios novos e reabilitados, garantido que possuam a menor energia incorporada possível. Para isso, é necessário simplificar as metodologias para a sua quantificação.
Grande parte das atividades humanas é responsável por diversos impactos ambientais devido às elevadas emissões de carbono que lhe estão associadas. A concentração de carbono na atmosfera acelerou desde a Revolução Industrial e já ultrapassou a marca histórica das 400 ppm, o que teve consequências graves a nível climático. Este cenário resulta de uma economia ainda excessivamente dependente dos combustíveis fósseis, o que trouxe também grandes problemas relacionados com a dependência e a segurança energéticas. Reduzir as emissões de carbono é, por isso, uma prioridade tanto a nível europeu como a nível global, o que está bem patente nos vários e ambiciosos objetivos e metas que têm vindo a ser estabelecidos nos últimos anos.
Descarbonizar a economia até 2050 é a missão abraçada pela União Europeia (UE) em 2018. Desde então, muitas ações foram delineadas e postas em prática, em vários setores, para atingir esse objetivo, promovendo a transição energética. É de referir, a nível nacional, o Decreto-Lei n.º 84/2022, de 9 de dezembro, que aumenta de 47 % para 49 % a meta nacional de energias renováveis no consumo final bruto de energia até 2030, o que mostra o alinhamento das políticas nacionais com os objetivos europeus.
Como é sobejamente conhecido, o setor dos edifícios é um setor crucial para se atingir a descarbonização, sendo vários os requisitos que estes têm de cumprir a este nível. O grau de exigência é crescente e será cada vez maior, abrangendo não só os edifícios novos como também os reabilitados. A reabilitação energética dos edifícios existentes, impondo requisitos termo-energéticos elevados, é um objetivo ambicioso, mas incontornável para se atingir a descarbonização do setor.
Desafios da nova diretiva
São de salientar as medidas apresentadas na proposta de revisão da Diretiva Europeia para o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD), apresentada em dezembro de 2021, e que esteve em consulta pública em 2022. Esta proposta de revisão da EPBD foca vários aspetos pertinentes, mas dá especial ênfase à necessidade de reabilitar os edifícios existentes com um grau de exigência muito elevado, principalmente no que se refere à descarbonização. Esta nova proposta introduz a definição de “edifícios de emissões zero”, que será exigível a todos os edifícios novos a partir de 2030 (edifícios públicos a partir de 2027). Os edifícios existentes devem ser reabilitados de modo a atingirem a meta de emissões zero até 2050. Há, por isso, uma grande pressão para reabilitar e descarbonizar rapidamente o edificado.
Neste contexto, há, muitas vezes, a tentação de reabilitar os edifícios existentes recorrendo maioritariamente, se não exclusivamente, aos sistemas de climatização, de águas quentes sanitárias (AQS) e de produção local de energia renovável, não prevendo quaisquer intervenções na sua envolvente. Por vezes, o recurso a estes equipamentos é a solução mais fácil, mais barata e mais eficaz no que se refere à descarbonização. No entanto, essa escolha ignora por completo aspetos cruciais relacionados com o bem-estar e o conforto dos ocupantes ou com a prevenção da ocorrência de certas anomalias na envolvente dos edifícios, constituindo, por isso, uma má prática construtiva que deve ser contrariada. A aplicação de medidas de eficiência energética na envolvente de um edifício a reabilitar deve ser sempre a primeira solução a ser equacionada e a primeira a ser implementada, pois, para além dos impactos positivos já referidos, leva ainda à redução das necessidades energéticas do edifício e, consequentemente, da potência requerida aos sistemas que necessitem de ser instalados.
Além disso, a proposta de revisão da EPBD enfatiza que a reabilitação dos edifícios deve ser feita numa perspetiva de ciclo de vida, priorizando a descarbonização total dos edifícios. Esta estratégia passa, entre outras coisas, pela eliminação das emissões locais de carbono (eliminação dos equipamentos alimentados a combustíveis fósseis) e pela quantificação e pelo controlo da energia e do carbono incorporados nos diversos materiais existentes nos edifícios.
À medida que a energia operacional dos edifícios diminui, em consequência das crescentes exigências regulamentares dos últimos anos ao nível da eficiência energética, a relevância da energia incorporada nos materiais utilizados vai-se tornando cada vez mais significativa, conforme se mostra na Figura 1. Assim, para se atingir a descarbonização total, será necessário investir numa criteriosa seleção dos materiais a utilizar nas soluções a implementar nos edifícios, escolhendo soluções com baixa pegada de carbono.
A quantificação da energia e do carbono incorporados nos materiais é um passo em frente para se atingir a descarbonização do setor, mas há ainda um grande caminho a percorrer, principalmente no que se refere à disponibilização da informação necessária relativa aos materiais e produtos da construção e de ferramentas de apoio acessíveis e de fácil utilização.
A energia incorporada nos materiais de construção representa toda a energia consumida durante a sua vida útil, incluindo as etapas de extração dos recursos, produção, montagem e fim de vida. Para reduzir a energia incorporada nos materiais, é fundamental envolver toda a cadeia de valor, incluindo fabricantes, projetistas e outros profissionais da indústria da construção, de modo a selecionar e incluir no edifício soluções energeticamente eficientes e de baixa energia e carbono incorporados.
Contudo, ao contrário do que acontece com os sistemas de AVAC e AQS, onde existem informações sobre a sua eficiência energética, tais como o coeficiente de desempenho sazonal (SCOP), que permite identificar e selecionar os sistemas mais eficientes, do ponto de vista dos materiais e sistemas construtivos, ainda não é comum serem disponibilizadas informações sobre a energia e o carbono incorporados nos materiais ou quaisquer outros indicadores ambientais.
Avaliação do ciclo de vida
Atualmente, uma das metodologias mais utilizadas para quantificar o desempenho ambiental, incluindo a quantificação da energia incorporada nos materiais, é a Avaliação do Ciclo de Vida (ACV). Contudo, embora a ACV seja uma metodologia reconhecida, ainda pouco conseguiu influenciar a indústria da construção dada a complexidade associada à sua utilização e a falta generalizada de informação sobre as características dos produtos, sendo poucos os que apresentam as respetivas Declarações Ambientais de Produto (DAP).
A dificuldade em aplicar a metodologia ACV deve-se a vários fatores e, em particular, ao elevado número de indicadores necessários para medir o impacto ambiental de um determinado produto, o qual tem vindo a aumentar ao longo dos últimos anos (EN-15804). Uma DAP tem mais de 20 indicadores de impacto ambiental, alguns dos quais de difícil quantificação. Consequentemente, esta metodologia não é acessível às pequenas e médias empresas (PMEs), que compõem a grande maioria do tecido empresarial português e que têm poucos recursos disponíveis.
Para ultrapassar este problema, é usual recorrer-se a bases de dados (por exemplo, Ecoinvent) que são tradicionalmente construídas numa abordagem “bottom-up”, representando medições em escala individual aceites como representativas do setor onde atuam. Uma vez que os resultados da ACV dependem do quão próximo os dados usados refletem o produto, a utilização de dados pouco representativos origina, por vezes, resultados desfasados da realidade.
É fundamental adotar uma abordagem simplificada de ACV que permita reduzir e quantificar de forma acessível os dados representativos dos processos produtivos das empresas para estimar a pegada de carbono dos seus produtos.
Para além da ACV, existem igualmente bases de dados que fornecem informações sobre a energia incorporada nos diversos materiais de construção. Contudo, esses dados não são usualmente baseados numa amostragem estatisticamente representativa (Röck et al., 2020). Sem um inventário adequado e representativo, o cálculo da energia incorporada não irá refletir o processo produtivo da empresa, nem os seus benefícios e as suas limitações, o que dificulta a implementação de medidas de melhoria para reduzir a pegada de carbono associada. Para o mesmo produto, há diferenças significativas na quantificação da energia incorporada devido a fatores relacionados com a tecnologia utilizada, condições de operação, influência do tipo de combustível, etc.
Para ultrapassar todas estas limitações, é fundamental adotar uma abordagem simplificada de ACV que permita reduzir e quantificar de forma acessível os dados representativos dos processos produtivos das empresas para estimar a pegada de carbono dos seus produtos. A necessidade de simplificar a ACV para possibilitar o seu uso na indústria é também reconhecida internacionalmente. O World Business Council for Sustainable Development, entidade que reúne uma parte significativa das maiores empresas a nível mundial, lançou a iniciativa Mainstreaming Life-Cycle Analysis for Buildings and Materials, que é apoiada por diversos grupos como Lafarge-Holcim e Saint Gobain. A iniciativa propõe a criação de regras comuns a aplicar a todos os materiais e que os resultados da ACV sejam publicados numa linguagem simples e acessível. Propõe ainda a padronização dos fluxos a serem recolhidos ao longo da cadeia da construção, o que se traduz numa redução do número de categorias, de impactos e de indicadores. Uma abordagem simplificada também reduz os custos da sua aplicação, o que facilitaria a sua implementação em larga escala, incluindo pelas PMEs. Para além disso, permitiria que as empresas gastassem os seus recursos essencialmente no desenvolvimento de soluções técnicas de baixa energia e carbono incorporados em vez de na aplicação da metodologia de avaliação do desempenho ambiental em si.
Considerando a elevada especialização dos projetos de construção de edifícios, é importante a disponibilização de ferramentas que permitam, por um lado, auxiliar as empresas na recolha de informações para quantificar a energia incorporada nos seus produtos e, por outro, que essas informações estejam facilmente acessíveis aos diversos profissionais da indústria da construção. Estas ferramentas de avaliação de desempenho ambiental devem possuir um conjunto de características específicas que permita a sua difusão entre os profissionais do setor (Di Bari et al., 2022):
- Facilidade de utilização – representa a facilidade com que uma ferramenta é capaz de ser utilizada;
- Funcionalidade – representa a capacidade de a ferramenta funcionar e comunicar de forma simples com o utilizador;
- Fiabilidade – representa a confiança que é possível ter na precisão dos resultados de uma medição;
- Interoperabilidade – representa a possibilidade de a ferramenta trocar e fazer uso de diferentes informações;
- Conformidade – representa a conformidade da ferramenta com as normas em vigor.
A utilização de ferramentas e metodologias simplificadas pode facilitar a elaboração de benchmarks, permitindo que cada empresa consiga quantificar qual o desempenho ambiental dos seus produtos em relação aos concorrentes. Essas ferramentas simplificadas também permitiriam que fossem feitas escolhas criteriosas e informadas dos sistemas e produtos construtivos, baseadas em evidências – dados primários.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº145 da Edifícios e Energia (Janeiro/Fevereiro 2023)
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.