Um edifício histórico espanhol que chegou a estar “em ruínas” está a preparar-se para se tornar num edifício de energia positiva e para inspirar a construção de um grande projecto de desenvolvimento urbano no Sul do país.
Na cidade espanhola de Valladolid, um edifício histórico do século XVI, inicialmente reabilitado em 2012, está, agora, a sofrer uma profunda revolução energética com o objectivo de se tornar positivo em termos de energia.
Depois de muito se falar em edifícios com necessidades quase nulas de energia (nZEB), cada vez mais se fala em edifícios de energia positiva (PEB – Positive Energy Buildings, na sigla em inglês). Isto é, edifícios cuja produção de energia renovável ultrapassa as respectivas necessidades energéticas.
O motor da transformação que, por estes dias, decorre na Casa Palacio de los Miranda, em Valladolid, é o projecto europeu EXCESS. Financiado pelo fundo de investigação e inovação europeu Horizonte 2020, o projecto FleXible user-CEntric Energy poSitive houseS está a apoiar o desenvolvimento de quatro projectos piloto em quatro zonas climáticas, representativas dos diferentes climas do continente europeu. Recolhidos os resultados das experiências e elaboradas as conclusões, o propósito do projecto é o de se replicar por todos os cantos do continente, qualquer que seja o clima ou o tipo de construção.
Ao todo, participam no projecto cobrindo toda a cadeia de valor dos projectos de eficiência energética em quatro zonas climáticas distintas, nomeadamente Finlândia, Bélgica, Áustria e Espanha.
No país vizinho, a ideia inicial proposta ao ateliê de arquitectura e urbanismo Urb-atelier apontava para uma demonstração num edifício novo erigido numa pequena nova cidade, chamada Nivalis, pensada de raiz para ser, toda ela, de energia positiva. Alguns problemas administrativos e atrasos decorrentes da pandemia, quando ela acabara de chegar, em 2020, ditaram outros planos.
O edifício escolhido para ser transformado num edifício de energia positiva mudava então de lugar. Se o projecto da cidade de energia positiva não fica esquecido – ainda está nos planos e deverá ser informado pela experiência obtida em Valladolid, como se verá mais à frente neste texto –, o edifício escolhido para integrar o projecto europeu pertence à cidade de Valladolid, no interior Norte do país, e apresenta características totalmente diferentes – e de particular interesse para a realidade ibérica, dadas as condições climatéricas e tratando-se de um edifício histórico.
O grande desafio, num edifício cuja fachada histórica deve ser conservada, passou por “encontrar formas de instalar os sistemas de energia mais eficientes no edifício”, conta María Cantalapiedra Barbosa, arquitecta no Urb-atelier.
O telhado do palácio vai ser “coberto por painéis fotovoltaicos e por sete a oito painéis solares térmicos para produção de águas quentes sanitárias”. Serão instaladas duas bombas de calor de 40 quillowatt para aquecimento e arrefecimento do espaço e uma bomba de calor aerotérmica para as águas quentes sanitárias.
Em parceria com o ateliê espanhol na liderança do projecto EXCESS, está o Centro Nacional de Energias Renováveis (CENER), organização de investigação sob a alçada do Ministério da Ciência e Inovação espanhol, do Centro para a Investigação Energética, Ambiental e Tecnológica, do Ministério da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico e do Governo de Navarra. Para além do CENER, também são parceiros a Agência Andaluza de Energia e a NETx.
Segundo o projecto europeu EXCESS, que junta 21 parceiros de oito países, entre instituições de investigação, agências locais de energia, empresas privadas e o ICLEI (rede internacional de desenvolvimento sustentável que junta centenas de municípios e associações internacionais), os edifícios históricos representam, actualmente, mais de 30 % do parque edificado europeu e mais de um terço do total do consumo energético de todo o sector residencial europeu.
Pode um palácio do século XVI ser o edifício do futuro?
A Casa Palacio de los Miranda esteve até há bem poucos anos “em completo estado de ruína”, conta-nos María Cantalapiedra Barbosa. O edifício acabou por ser reabilitado em 2012 e agora está a receber uma transformação profunda. O projecto prevê a renovação, por inteiro, do edifício, com a sua subdivisão em nove fogos habitacionais, cinco destes duplex. Ganhou ainda três andares subterrâneos, destinados a estacionamento e arrecadações. O piso térreo será de uso comercial e os dois andares superiores serão dedicados a habitação.
Neste momento, o exterior do edifício, o telhado e os três andares subterrâneos estão finalizados, faltando terminar o interior do edifício e a instalação de sistemas energéticos. Um dos grandes desafios foi minimizar as necessidades energéticas preservando integralmente a fachada histórica.
A arquitecta do Urb-atelier, também sediado em Valladolid, relatou à Edifícios e Energia alguns dos desafios enfrentados. “Porque o edifício já existe, precisamos de nos adaptar a ele e aos regulamentos locais”, diz, sublinhando duas intervenções chave: a instalação, no envelope do edifício, de soluções de isolamento e equipamentos energéticos, e a implementação de sistemas de produção de energia renovável.
Com o objectivo de garantir o aumento substancial da eficiência energética do edifício, e sem a possibilidade de intervir nas suas paredes exteriores, será colocado isolamento no interior e “um isolamento reflexivo multi-camada” no telhado.
Para garantir conforto térmico no interior, será instalado piso radiante para aquecimento e arrefecimento, sendo que isso, num edifício com as características do palácio, revelou-se um desafio nos segundo e terceiro andares. Com as regras locais a obrigarem a uma altura [livre] mínima de 2,5 metros e com apenas 2,6 metros disponíveis, sobraram 10 centímetros para a colocação do piso radiante. Aqui, será utilizado um piso radiante diferente do instalado no primeiro andar, sem estas limitações, e especialmente desenvolvido para projectos de reabilitação. “Isto vai dar-nos dados para comparar e ver como um funciona relativamente ao outro”, explica a arquitecta.
”Todos os sistemas do edifício serão monitorizados e, através de um outro controlador desenvolvido pelo CENER, todos os dados do edifício serão lidos e o sistema decidirá, consoante o preço da energia e as necessidades energéticas do edifício, se o excedente de energia produzido será utilizado para carregar as baterias existentes no edifício ou vendido à rede.”
Para a produção de energia, o ateliê contou com o apoio do CENER para o desenho do sistema. Assim que a obra esteja concluída e os sistemas instalados, as estimativas apontam para um edifício de energia positiva. É sabido, contudo, que o comportamento dos ocupantes e o seu compromisso com a redução do consumo energético será crucial para alcançar o objectivo.
Produzir acima das estimativas de consumo
O telhado do palácio vai ser “coberto por painéis fotovoltaicos e por sete a oito painéis solares térmicos para produção de águas quentes sanitárias”. Serão instaladas duas bombas de calor de 40 quillowatt (kW) para aquecimento e arrefecimento do espaço e uma bomba de calor aerotérmica para as águas quentes sanitárias. Ao todo, as necessidades estimadas por ano apontam para 37 quilowatt/hora (kWh) por metro quadrado.
A electricidade produzida no telhado será também utilizada para alimentar as bombas de calor e duas estações eléctricas de carregamento de veículos eléctricos, instaladas nos pisos subterrâneos.
Ao todo, serão instalados 145 a 147 painéis fotovoltaicos no telhado, com uma potência instalada de 55 quilowatt/ pico (kWp) e uma produção anual estimada em 61,5 kWh por metro quadrado. De acordo com as projecções elaboradas pelo CENER, a produção estimada ultrapassa o consumo previsto de 59 kWh, calculado como referência anual. De forma a gerir o excedente produzido, sobretudo durante os meses com maior potencial de produção solar, serão instaladas no edifício baterias com capacidade de armazenamento de 30 kWh.
Todo o desempenho energético do edifício será gerido a partir de um sistema de gestão de energia capaz de prever as necessidades de electricidade. Serão instalados sensores para monitorizar níveis de humidade, temperatura e qualidade do ar e controladores para gerir a energia utilizada na ventilação, já que será também instalado um recuperador de calor ventilado.
A análise automatizada e conjugada dos dados será uma peça-chave do sistema energético instalado. “Todos estes dados passam, depois, por um sistema de gestão do edifício que foi desenvolvido por um outro parceiro – a NetX. Desta forma, os sistemas do edifício serão monitorizados e, através de um outro controlador desenvolvido pelo CENER, todos os dados do edifício serão lidos e o sistema decidirá, consoante o preço da energia e as necessidades energéticas do edifício, se o excedente de energia produzido será utilizado para carregar as baterias existentes no edifício ou vendido à rede”, explica María Cantalapiedra Barbosa.
“O interessante, aqui [neste projecto], é como tudo funcionará em conjunto e a flexibilidade que isso dá”, afirma a arquitecta, confrontada com a tarefa de transformar um edifício histórico num edifício de energia positiva.
Com os trabalhos interiores a decorrerem agora, e com o projecto europeu a terminar no final do próximo ano,
espera-se a finalização dos interiores e da instalação de equipamentos daqui “a sete ou oito meses”. A expectativa é a de “começar a monitorizar alguns dados já no final do Verão”, com a chegada dos primeiros inquilinos ao edifício. A partir desse momento, a equipa por detrás do projecto vai contar, então, com “sensivelmente um ano para fazer a monitorização total do edifício e elaborar o relatório para a União Europeia”.
Os resultados na demonstração do palácio de Valladolid servirão, depois, de modelo a replicar em edifícios históricos no contexto climático do Sul da Europa, mas também em edifícios de nova construção e com menos dificuldades de execução técnica e instalação de equipamentos.
Exemplo disso mesmo serão os edifícios de Nivalis, um grande projecto de desenvolvimento urbano, a construir de raiz em Granada. Foi, como se disse no início deste texto, com a construção do primeiro edifício do projecto que se pensou avançar para o EXCESS.
Nivalis, o sonho de uma pequena cidade de energia positiva
Uma cidade de dois bairros a nascer numa encosta de Granada, a começar nos 800 metros de altitude e a acabar nos 1 200. A visão é a de um centro urbano ecológico e próximo da natureza, onde veículos a combustão não entram e em que se privilegiam as deslocações a pé e de bicicleta, através de suaves caminhos que serpenteiam a encosta. O sonho é o de “fazer algo novo”, com um foco na sustentabilidade e no desempenho energético, com produção e utilização de energia 100 % renovável.
Tudo começou no início do milénio. Este “é um projecto de desenvolvimento urbano” e é também a visão de Juan Antonio, arquitecto na Urb-atelier e pai de María Cantalapiedra Barbosa. Mas é também uma visão de ecologia e desenvolvimento urbano sustentável.
“Inicialmente, trabalhou com arquitectos locais que não entendiam o que realmente imaginava sobre desenvolvimento sustentável. Foi por isso que entrou em contacto com Richard Rogers”, reconhecido arquitecto italiano, falecido em 2021. “Elaboraram a primeira planta do terreno, com 240 hectares”, informa María.
Este é um projecto complexo que leva o seu tempo. Em 2016, ganhou novo fôlego e a preparação “mais seriedade”. Entraram em contacto com o CENER e delinearam uma estratégia de energia e mobilidade para Nivalis. “Estudaram diferentes abordagens e diferentes sistemas de energia que podiam ser utilizados ali e decidiram que o sistema com a melhor relação custo-benefício seria utilizar painéis fotovoltaicos com bombas de calor geotérmicas. Em Nivalis, a ideia passa por assegurar que os edifícios são de energia positiva ou, pelo menos, de desempenho energético quase nulo [nZEB] , explica. Privilegia-se uma mobilidade limpa e suave, a captação de águas pluviais e a sua depuração para utilização no local, bem como a minimização da produção de resíduos.
Em Nivalis, encontramos todos os usos – habitação, serviços, comércio, escolas e hotéis. Aqui, mais do que assegurar que cada edifício é de energia positiva, o objectivo é equilibrar a balança. Os edifícios devem partilhar energia entre eles. “A ideia passa mais por criar Bairros de Energia Positivos (Positive Energy Districts, PED, na sigla em inglês) do que edifícios de energia positiva por si só”.
Serão, no total, cerca de 2 500 fogos habitacionais. Avançar tem sido difícil, até porque a área total, de 240 hectares e com quatro quilómetros de extensão, pertence a dois municípios, facto que tem dificultado as questões administrativas. Mas há interesse, garante María, e todo o planeamento urbano está aprovado.
O estacionamento, à entrada de Nivalis, estará coberto por painéis fotovoltaicos e oferecerá estações de carregamento eléctrico. Todo o território estará ligado através de uma “espinha verde”, assegurando a ligação entre o ponto mais baixo, onde se situará a praça central, e o ponto mais alto da pequena cidade.
María Cantalapiedra Barbosa explica que o projecto de transformação do palácio de Valladolid num edifício de energia positiva vai servir de modelo para as ideias a aplicar nos novos edifícios de Nivalis. “Os sistemas de energia, o controlador inteligente e todos os sensores no edifício irão funcionar praticamente do mesmo modo. A ideia é replicar o que aprendemos no EXCESS”.