Os edifícios zero emissões estão na luz da ribalta, com as políticas europeias a exigirem às cidades a neutralidade climática. Mas o que significa descarbonizar os edifícios e como podem estes, enquanto protagonistas, encenar a mudança para um futuro mais sustentável? Eficiência energética, renováveis, soluções digitais, design circular, conexões com a comunidade e soluções para as cidades são algumas das palavras-chave.

Em 2015, a constituição do Acordo de Paris, que entrou em vigor no ano seguinte, foi um ponto decisivo no rumo do trajecto climático ao solicitar a limitação do aquecimento global e a redução das emissões de CO2 em 40 % em relação aos valores de 1990, para travar os riscos e os impactos associados às alterações climáticas. Assinado pela União Europeia (UE), e por outros 194 países, serviu como catalisador para vários compromissos políticos que lhe sucederam no mesmo sentido, entre os quais pacotes estratégicos para enfrentar um dos maiores desafios nesta caminhada – a transição energética. Um deles, o pacote legislativo Energia limpa para todos os europeus, apresentado em 2016, definiu, por exemplo, que os Estados-Membros (EM) teriam de desenvolver um Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) para o horizonte 2030. Mais tarde, no final de 2019, o Pacto Ecológico Europeu entrou em cena como resposta à declaração de crise climática pelo Parlamento Europeu, estabelecendo um roteiro para a UE atingir a neutralidade climática até 2050 – ambição que, em 2021, passou a ser obrigatória para todos os EM na sequência da aprovação da Lei Europeia do Clima. Surgiu, então, ainda em 2021, outro pacote da Comissão Europeia, o Fit for 55, que, para assegurar a concretização desta meta, reforçou a ambição climática ao procurar uma redução de pelo menos 55 % das emissões líquidas de gases com efeito de estufa (GEE) até ao final da década.

Passo a passo, estes desenvolvimentos políticos para cidades mais sustentáveis foram trazendo crescentes exigências ao sector dos edifícios. Da descarbonização dos consumos energéticos e da diminuição das necessidades de energia para reduzir desperdícios e emissões associadas à operação, passámos para uma visão que se expande a todo o ciclo de vida do edifício, que deve ser de emissões nulas, e coloca à lupa temas como energia incorporada e carbono incorporado dos materiais e equipamentos. Em paralelo, caminhamos cada vez mais para uma abordagem macro porque, segundo os especialistas, mais do que descarbonizar um edifício, é preciso escalar soluções e explorar sinergias ao nível local.

Edifícios de emissões nulas

“O sector dos edifícios e da construção não está no caminho certo para se descarbonizar até 2050. As emissões operacionais de CO2 e a utilização de energia do sector atingiram [em 2021] um valor recorde, excedendo os picos pré-pandemia. Acções concretas são necessárias já.” O balanço é feito pela GlobalABC, a plataforma mundial que reúne diversos agentes em torno do objectivo de alcançar um sector dos edifícios e da construção zero emissões, eficiente e resiliente, num relatório anual de progresso, publicado em Novembro.

No 2022 Global Status Report for Buildings and Construction, o cenário, considerando dados de 2021, é este: o sector, a nível mundial, é responsável por cerca de 37 % das emissões de CO2 relacionadas com a energia e com os processos e por mais de 34 % da procura de energia, e a descarbonização do sector – “levada a cabo de forma pouco consistente” – parece cada vez mais longe, com o fosso entre o objectivo da neutralidade carbónica e o desempenho energético dos edifícios a aumentar. Na Europa, o sector dos edifícios apresenta-se com um peso ainda maior na procura de energia – com uma fatia de 40 % do consumo final de energia, de que 80 % diz respeito a energia de origem fóssil. É certo que o ano de 2022, com o eclodir da guerra na Ucrânia e com a consequente criação do plano europeu RePowerEU, poderá gerar outros resultados, mas os contornos do desafio mantêm-se.

Como parte do pacote Fit for 55, a revisão da Directiva Europeia para o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD), ainda não finalizada, tem avançado com novas e mais ambiciosas normas de eficiência energética para edifícios novos e existentes. A ideia é ir além dos edifícios de necessidades quase nulas de energia e concretizar edifícios de emissões nulas, ou “zero emissões”, cujo Potencial de Aquecimento Global (PAG), com base em emissões de carbono durante todo o ciclo de vida, tem de ser explicitado num certificado energético. O prazo para que isto aconteça é que ainda não reúne consenso.

No caso das novas construções, a proposta da Comissão Europeia, apresentada no final de 2021, é que se aponte para 2030 ou, no caso dos novos edifícios detidos por organismos públicos, até 2027. O Conselho Europeu defende que os organismos públicos devem ter mais um ano para cumprir a meta, apontando para 2028 na proposta apresentada em Outubro de 2022. Já neste ano, o Parlamento Europeu fez saber que quer acelerar todo o processo, tendo em vista o ano de 2028 para os novos edifícios e o de 2026 para os públicos.

Nas construções existentes, o caminho deverá ser feito de forma faseada e com base em requisitos mínimos de desempenho de modo a melhorar os edifícios com classificação G, correspondendo aos 15 % com pior desempenho energético em cada EM. A Comissão Europeia quer que estes subam para, pelo menos, uma classificação F até 2027, no caso dos edifícios não-residenciais, e até 2030, para os habitacionais. Para o Parlamento Europeu, a melhoria deverá resultar numa classificação mínima de E até 2027 nos não-residenciais e 2030 nos residenciais, patamar que deverá subir até D em 2030 e 2033, respectivamente. O Conselho partilha a exigência de um desempenho energético D até 2033 nos edifícios residenciais e propõe, para os não-residenciais, outro método: estes têm de estar abaixo do limiar do consumo de energia primária dos 15 % edifícios deste tipo com pior desempenho do EM em questão até 2030 e dos 25 % até 2034.

Das discussões em trílogo, deverão ainda resultar outras exigências: criação de roteiros para monitorizar a renovação energética e os resultados climáticos, obrigatoriedade de certificados de desempenho energético – incluindo certificados A0 para edifícios de emissões nulas e certificados A+ para aqueles que são A0 e contribuem também para a rede energética com energia renovável produzida no local –, bem como de produção de energia solar nos edifícios novos, abandono dos combustíveis fósseis para aquecimento e arrefecimento, integração de infraestruturas verdes, e novos parâmetros para a qualidade do ambiente interior, para a capacidade de resiliência às alterações climáticas, para a segurança contra incêndios, entre outros.

Uma coisa é certa: a descarbonização vai continuar a fazer parte de uma das várias exigências sobre o sector dos edifícios, que, a partir de 2027 ou 2028, deverá passar a estar abrangido por um novo Sistema de Comércio de Licenças de Emissão, o CELE II, que irá fixar um preço mais duro por tonelada de emissões de GEE ligadas a este sector e ao dos transportes.

“É preciso ter um discurso narrativo, mas de compromisso, onde as coisas aconteçam. E isto não pode ser só do Governo; tem que ser da sociedade civil, porque não vai haver nenhum orçamento de Estado que consiga resolver os desafios da reabilitação.”

Helder Gonçalves

Descarbonização dos edifícios de A a Z

Mas afinal o que significa realmente descarbonizar os edifícios? “É uma temática muito complicada”, refere Marco Pedroso, responsável pelo pilar da sustentabilidade no BUILT CoLAB, um laboratório colaborativo para alinhar o sector da construção com as transições ecológica e digital. Numa primeira vertente, relacionada directamente com a fase operacional, a descarbonização dos edifícios implica consumir energia limpa. “De uma forma simplista, toda a energia que nós consumimos nos edifícios terá que ser de origem renovável”, afirma, por sua vez, Manuela Almeida, investigadora na Universidade do Minho. Implica também, para facilitar esse caminho, reduzir necessidades energéticas, relevando a necessidade da eficiência energética dos aspectos construtivos e dos equipamentos.

“A arquitectura aplicada em Portugal, muitas vezes, não se coaduna com o clima que temos, actualmente, no país, nem com as alterações climáticas e com os fenómenos extremos expectáveis”, alerta Marco Pedroso. “É muito giro construir edifícios envidraçados, expostos a Sul, com uma vista privilegiada, mas se um sistema de climatização estiver a gastar muita energia eléctrica para dar conforto térmico às pessoas no seu interior, estaremos, naturalmente, a contribuir para nos distanciarmos daquilo que é um objectivo que não é facultativo. (…) Não podemos continuar a ter o mesmo nível de dispêndio ineficiente de energia, sem pensar nas consequências”, acrescenta João Moutinho, director do BUILT CoLAB.

Em matéria de eficiência energética, Helder Gonçalves, director do Laboratório de Energia do LNEG – Laboratório Nacional de Energia e Geologia, também lembra que o Grupo dos Sete considera este elemento o fuel primordial na rota para a neutralidade carbónica e que a Agência Internacional de Energia (AIE), na sua conferência sobre o tema, apelou a que se duplicasse o progresso em eficiência energética até 2030, lançando também o relatório Energy Efficiency – The decade for action e um toolkit de princípios e pacotes políticos para ajudar os governos a implementarem acções eficientes.

Não obstante este papel, e embora reconheça que a eficiência energética está contemplada nos programas dos governos, o responsável do LNEG argumenta que o tema “não está na ordem do dia” e que “é por isso que os resultados são sempre muito fraquinhos”. “Se olharmos para Portugal, as renováveis estão na agenda, nas ‘bocas do mundo’. A eficiência energética não está.” Então o que fazer?

Apostar na componente passiva, adoptando princípios do desenho bioclimático para adaptar o edifício às características do local e do clima, melhorando isolamentos, dimensionando envidraçados de forma adequada, é o caminho para os especialistas. Outra hipótese, também apontada pela construção sustentável, é a integração de fachadas e coberturas verdes, por exemplo, com benefícios a nível da mitigação do efeito ilha de calor e da compensação de emissões de CO2. Todavia, para Manuela Almeida, estas intervenções verdes ainda carecem de mais investimento e melhoria, para evitar que instalações desadequadas resultem em infiltrações ou ineficiências do ponto de vista do consumo de água. O recurso hídrico é, aliás, um elemento que deverá fazer parte das preocupações nos edifícios, não só através da melhoria da eficiência, mas também do aproveitamento de águas pluviais para lavagem de pavimentos, rega de jardins, e descargas das sanitas, por exemplo. Esta opção, que torna os edifícios mais sustentáveis e pode contribuir para a descarbonização das cidades pela redução de necessidades de transporte de água, “já está posta em prática, só que ainda é uma solução singular, não generalizada”, refere.

Na componente activa, a aposta está em electrodomésticos e sistemas de iluminação e AVAC-R (aquecimento, ventilação, ar condicionado e refrigeração) mais eficientes. Neste último campo, Helder Gonçalves salienta ser “fundamental” alavancar a taxa de implementação dos colectores solares térmicos em Portugal (actualmente “entre 2 e 3 %”) para dar conta da fatia “importantíssima do consumo dos edifícios relativa às águas quentes sanitárias”. Destaca ainda o fotovoltaico enquanto elemento central, mas que já recebe mais atenção, tendo crescido nos últimos anos, e o ar condicionado como um equipamento que, com o sobreaquecimento das cidades, terá uma utilização crescente.

As bombas de calor já fazem parte desta viagem, estando nas prioridades da Comissão Europeia, que prepara a publicação do primeiro Plano de Acção para as Bombas de Calor, para assegurar, em alinhamento com o REPowerEU, a instalação de mais 60 milhões de equipamentos na Europa até 2030 – um mercado que, segundo a EHPA, voltou a bater um recorde de vendas (cerca de três milhões) em 2022.

“A certificação energética, muitas vezes, já mitiga algumas das ineficiências e resolve alguns dos problemas, mas o verdadeiro desafio está naquilo que são as contribuições do edifício ao longo de todo o ciclo de vida”, afirma João Moutinho. Neste ponto, e já “ultrapassada” a proposta dos edifícios de necessidades energéticas quase nulas, Manuela Almeida explica, por sua vez, que novas variáveis entram em jogo com os edifícios de emissões de carbono nulas. Neste cenário, os materiais de construção – com preponderância para os materiais de base natural – assumem um papel de destaque e conceitos como energia incorporada, carbono incorporado, pegada ambiental, ecodesign, Declaração Ambiental de Produto (um “passaporte” da pegada carbónica de um produto que se está a tornar cada vez mais comum), avaliação do ciclo de vida (ACV) e economia circular passam a fazer parte do vocabulário do sector.

Energia e carbono incorporados “não são conceitos novos” e estão associados a todo o edifício, “desde paredes, janelas, pavimentos, até colectores solares, caldeiras, painéis solares, etc.”, uma vez que a extracção, a produção, o transporte, a operação, e a demolição têm uma pegada ambiental associada, realça. Para a especialista, o facto de a revisão da EPBD enfatizar a avaliação da sustentabilidade – sobretudo através do tal PAG – “é, no fundo, uma chamada de atenção para que se olhe para os materiais e se seja criterioso na escolha”. Embora ainda veja nos materiais de base natural alguns problemas, em particular, quanto à durabilidade, a investigadora felicita a decisão política. “É bom que haja pressão legislativa, porque obriga a mexer. As pessoas vão espernear, porque é tudo tão complicado. Não temos ainda as soluções óptimas, se calhar nem soluções boas, mas isto vai obrigar a que as pessoas pensem, a que invistam e procurem outras respostas até chegarmos às soluções ideais.”

Esta reflexão vai ter particular impacto na fase de concepção e não poderá estar dissociada da economia circular e da ACV, afirma Marco Pedroso. “Esta fase permite, desde o início, simular e optimizar soluções a prescrever soluções para a construção e, assim, contribuir para a descarbonização”. Neste âmbito, João Moutinho remata que “a fase final do ciclo de vida, a desconstrução, que gera resíduos, é um dos principais desafios não só a nível ambiental, mas também a nível de sustentabilidade económica e social” – não só porque alguns resíduos de construção são perigosos, como o fibrocimento, ou porque alguns são depositados ilegalmente nos espaços periurbanos, mas também porque é preciso encontrar formas de valorizar os resíduos. O design para a desmontagem ou para a modularidade é uma hipótese para responder aos desafios, sobretudo nos próximos tempos em que, na visão do engenheiro eléctrico, se vai “deixar de construir e passar a fabricar e montar edifícios”.

Digitalização ao serviço da descarbonização

Como parte da dupla transição advogada pela UE, a transição digital anda de mãos dadas com a transição ecológica. E digitalização pode rimar, nos edifícios, com eficiência energética. “Na operação dos edifícios, nós sabemos que há todo um conjunto de soluções já disponíveis, portanto, electrodomésticos cada vez mais eficientes, equipamentos para medir o consumo e influenciar comportamentos, sistemas avançados de inteligência que controlam edifícios para regular, por exemplo, o sombreamento ou a temperatura ou a luminosidade de uma forma eficiente relacionada com a ocupação de pessoas no interior”, descreve João Moutinho.

Na qualidade de representante institucional do BUILT CoLAB, este especialista afirma que a digitalização, um dos grandes pilares do laboratório, pode ser útil para muito mais: “o BUILT CoLAB, neste momento, está a desenvolver soluções para o sector da construção para todas as fases do ciclo de vida”, para que se possa, através de um abordagem holística, conceber edifícios mais sustentáveis e reabilitar consoante as melhores práticas de sustentabilidade, encontrando o melhor trade-off entre vantagens e desvantagens das intervenções. “Só se pode avaliar aquilo que se consegue medir – e temos mesmo que medir. E, quando não pudermos medir, temos que estimar com muito rigor porque o efeito multiplicativo de estimativas, principalmente subestimadas, pode ser também devastador.”

Para isso, poderá fazer-se uso de tecnologias-chave. “Estamos a falar de coisas como inteligência artificial, IoT [Internet das Coisas], BIM”, explicita João Moutinho, identificando-as como os “basic building blocks” daquilo que se pretende fazer no sector da construção. Na perspectiva da adopção da metodologia BIM em Portugal, o responsável vê um “importante” contributo por “funcionar como substrato essencial para se fazer a avaliação da sustentabilidade”. Perceber de início o impacto ambiental subjacente a diferentes opções de materiais e fazer simulações dos seus comportamentos higrotérmicos são duas das possibilidades levantadas pelo BIM que facilitam que se faça, desde logo, a prescrição de uma “escolha integradora e que contribua positivamente para a redução dos impactos do edifício”, adiciona Marco Pedroso.

Também os digital twins cabem nesta digitalização. “O digital twin utiliza BIM, sensorização, IoT para, em tempo real, conseguirmos avaliar o que se passa no edifício tanto na fase de construção, optimizando-a, poupando materiais e recursos, baixando emissões associadas, como na fase de utilização e na de desmontagem do edifício”, descreve o engenheiro civil.

Mas num “sector conservador, que resiste à introdução de tecnologia e de ferramentas”, João Moutinho diz que parte da mudança vai exigir capacitação e introdução de ferramentas que sejam “simples e utilizáveis”, a cujo contributo para a sustentabilidade se irão somar vantagens de “eficiência e competitividade”. Nesse sentido, o BUILT CoLAB, no âmbito do projecto REV@Construction, trouxe à luz do dia, em Junho, instrumentos à disposição do sector. “As empresas têm de já estar a pensar preventivamente que a fase do pau [da obrigação] está para vir”, alerta, depois de o colega antever que as entidades bancárias vão deixar de querer estar associadas a actividades de grande carga carbónica quando o Banco Central Europeu, em Janeiro de 2026, passar a seguir a taxonomia europeia.

Desafio da reabilitação

Em 2050, a maior parte do parque edificado será composto por edifícios já existentes, incluindo os que hoje e nos próximos anos representam novas construções e que, mesmo assim, vão estar em incumprimento com a ambição plasmada na revisão da EPBD.

Assim, ainda com distância do horizonte de edifícios zero carbono, a AIE está a propor o conceito de zero carbon ready buildings (edifícios preparados para o zero carbono), que, segundo a agência, deverá ser atingido através da reabilitação em pelo menos 20 % do edificado existente até 2030. “Ou seja, estes edifícios ainda podem emitir carbono, mas têm de já estar preparados para, num futuro a curto prazo, deixarem de o fazer”, explica Manuela Almeida, ilustrando que tal pode significar a substituição de uma fonte de energia não-renovável por uma 100 % renovável, por exemplo, o gás natural por biocombustível.

Para dar resposta ao desafio da reabilitação energética, a EPBD sob discussão parece estar também a criar espaço para directrizes que reforcem o processo através de um Plano Nacional para a Reabilitação Energética, um documento complementar à Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE), aprovada pelo Governo português em 2021 no decorrer da Vaga de Renovação europeia.

Fala-se em planos e estratégias, mas, para Helder Gonçalves, não basta “ter intenções e porventura medidas”. Na sua visão, é preciso que o discurso narrativo e o compromisso mobilizem o Governo e a sociedade civil como um todo para fazer as coisas acontecerem, seja a reabilitação, seja a própria descarbonização. Mas no caso da reabilitação dos edifícios, é perentório: “não vai haver nenhum orçamento de Estado que consiga resolver os desafios da reabilitação. Os fundos [dispensados] são absolutamente impossíveis [para as necessidades]”. Partilhando da opinião de que o montante para lidar com a ineficiência de 80 % do parque edificado português só permite “tapar o sol com a peneira”, e notando os benefícios para o combate à pobreza energética, Manuela Almeida reitera que “a reabilitação dos edifícios é um must” e que será necessário encontrar novos modelos de negócio. “Uma das ideias da Comissão Europeia é taxar as petrolíferas e utilizar esse valor para a reabilitação do edificado”, refere.

Mas, afinal, como estamos em Portugal? Ana Brandão de Vasconcelos, enquanto membro do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e da equipa responsável pela monitorização do progresso da ELPRE, faz o seguinte balanço: “o sector dos edifícios está a descarbonizar; as alterações são sobretudo a montante, na produção de energia, sendo que é necessário reforçar o investimento na reabilitação energética do parque de edifícios existentes.” A avaliação tem por base os dados do último relatório de monitorização da ELPRE, que traça um cenário positivo no que concerne à percentagem de energia renovável – “a produção aumentou consideravelmente em todo o parque de edifícios; [sendo que] já se atingiu, em 2021, 9,7 % dos 11 % definidos para 2030” – e também à percentagem de redução de emissões de CO2 – “já se ultrapassou a meta definida para 2030 em todo o parque de edifícios, estando próximo da meta para 2040, de 47 %”. Na poupança de energia primária, o cenário de 2021 ainda é de recuperação do agravamento do consumo no residencial durante a pandemia, mas de redução de consumos nos edifícios não-residenciais. Já na questão da renovação em si, a trajectória demonstra que ainda se está “bastante aquém” da meta de 49 % para 2030. “Estamos só próximos de 1 %”, lamenta, ressalvando, porém, que o valor pode “estar subestimado” uma vez que a monitorização é feita a partir dos programas de financiamento existentes, podendo haver trabalhos de renovação fora desta esfera.

Para Manuela Almeida, a descarbonização rápida vai depender, precisa e principalmente, desta “reabilitação”. Vai também depender da capacidade de escalar soluções ao nível das comunidades, dos bairros e das cidades; soluções que, segundo João Moutinho, podem visar a “criação de dinâmicas de renovação histórica que beneficiam de economia de escala” através da análise de um conjunto de edifícios pela via tecnológica, para evitar que a renovação seja feita de forma insustentável do ponto de vista dos resíduos, mas não só.

Escalar soluções

“Quando se aborda a descarbonização das cidades, é preciso ver [a questão] no seu todo. Por um lado, podemos querer focar-nos nos edifícios, independentemente de serem de serviços ou residenciais, e [por outro] em como o sistema energético vai influenciar a descarbonização desse parque”, diz Helder Gonçalves. E é nesse último ponto que o representante do LNEG diz começarem a surgir oportunidades. “Tem de haver modelos de negócio atractivos, o que começa a haver, e opções legais mais ou menos atraentes, como as comunidades de energia renovável (CER).” Este modelo, cuja figura entrou em vigor em Portugal no início de 2020, também é apontado por Manuela Almeida como um caminho para pensar a “descarbonização em larga escala”, da comunidade e do bairro à cidade.

Apoiando-se naquilo que a EPBD elenca quanto aos edifícios estarem equipados com sistemas de produção de energia local, a engenheira reitera que “está mais do que provado que não é rentável ter esses sistemas de produção de energia renovável edifício em edifício”. “Para serem rentáveis, temos de construir sistemas que consigam abastecer não um edifício, nem dois, nem três, mas um conjunto grande. Quanto maior for, mais rentável é a solução.”

Num documento que preparou, Manuela Almeida incidiu também sobre as questões que surgem nesta área. Admitindo que é necessário “investir muito” para colmatar a lacuna nas soluções de armazenamento de energia, a docente diz que “as questões técnicas se resolvem”. Na sua visão, os “problemas de coordenação e gestão” na criação de CER são maiores, porque “há uma falta de interesse gerada por um desconhecimento generalizado e também porque nunca se investiu muito nisto”, sendo necessário que os municípios se envolvam mais e puxem os cidadãos para esta transição.

Outro tema que surge é o das redes de aquecimento e arrefecimento urbanas. Em Portugal, há um único exemplo deste sistema na Expo lisboeta, já com mais de duas décadas, e “não se replicou a solução”. Mas poderia ser uma opção viável? A resposta, acredita a investigadora, poderá ser positiva – tanto para o aquecimento como para o arrefecimento –, mas a análise tem de ser feita “caso a caso”. “Fizemos um pequeno ensaio para uma pequena CER em Braga para ver se teria pernas para andar e mostrou-se que sim.” Ressalvando que é necessário realizar mais estudos, e mais a fundo, uma vez que não há historial suficiente no país e poucos exemplos no Sul da Europa, Manuela Almeida diz que um futuro renovável parece abrir novas oportunidades para estas redes. “Em relação à rentabilidade das redes, há algumas dúvidas, principalmente quando pensamos em fontes de energia fóssil, mas, como agora temos de pensar num futuro com energia renovável, o caso muda de figura. A rentabilidade aumenta por essa via.”

“Um edifício é apenas, e só, uma célula, quando consideramos que um quarteirão é um órgão”. A analogia de Marco Pedroso deixa patente o facto de o edifício ter um contexto onde há potencial de interacção. Tal como um poste de iluminação pública pode ser mais ou menos eficiente, ecológico, inteligente e pode servir a sua função básica de iluminar ou incluir outras ao integrar sensores de monitorização de trânsito ou de qualidade do ar, por exemplo, também o edifício pode ser mais ou menos bem concebido e servir uma ou mais funções. As sinergias são, muitas vezes, encontradas na ponte com a mobilidade eléctrica – sistemas de carregamento de veículos eléctricos a entrarem nas políticas – e com a própria rede eléctrica, percebendo como adaptar os consumos e o comportamento dos cidadãos para uma maior flexibilidade e estabilidade da rede. A ideia é caminhar para bairros de energia positiva (PED), um modelo que se baseia em edifícios eficientes do ponto de vista energético e numa maior produção do que consumo resultantes de sistemas de energia renovável hipocarbónicos e que vai ser testado pela AdEPorto – Agência de Energia do Porto no município portuense no âmbito do projecto europeu ASCEND. PED a PED, a descarbonização dos edifícios e das cidades estará mais próxima.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 148 da Edifícios e Energia (Julho/Agosto 2023).