Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro/Fevereiro de 2023 da Edifícios e Energia
É um facto adquirido que a Qualidade do Ar Interior (QAI) tem um impacto significativo na nossa saúde e no nosso bem-estar e a QAI nos edifícios está intimamente ligada à utilização de energia na ventilação dos espaços. Por isso, e dada a crise climática, faz todo o sentido que a QAI seja integrada na Regulamentação Térmica (RT) para se conseguir o equilíbrio entre a necessidade de eficiência energética e a necessidade de manter o ambiente interior saudável e confortável para os ocupantes.
A importância da QAI tornou-se mais óbvia, especialmente durante a recente epidemia, no entanto, a actualização recente da legislação da RT em 2021/2022 alheou-se completamente desta constatação, mantendo o desinvestimento efectuado em 2013 com o abandono das auditorias à QAI e a extinção da figura “Peritos da QAI”.
A actual legislação tenta iludir-nos com “uma avaliação simplificada anual de requisitos relacionados com a QAI, a realizar por técnicos de saúde ambiental”, para grandes edifícios de serviços e determinados edifícios de comércio e serviços em funcionamento – estabelecimentos de ensino do primeiro ciclo do ensino básico e estruturas residenciais para pessoas idosas.
Ora, esta avaliação nada tem que ver com as auditorias à QAI tal como estavam estabelecidas antes de 2013, de onde queremos essencialmente destacar a avaliação dos caudais de ar novo e das condições higiénicas e de filtragem dos sistemas de climatização e ventilação, sem menosprezar a importância das medições dos parâmetros físico-químicos e microbiológicos. Entendemos ainda que estas auditorias devem abranger os edifícios multifamiliares novos e, essencialmente, os existentes nos quais existem muitas queixas de funcionamento incorrecto de exaustões de cozinhas e de instalações sanitárias.
A regulamentação conservou os requisitos necessários para minimizar o impacto dos edifícios na saúde dos ocupantes. Contudo, sem uma adequada estratégia de implementação, isso não é suficiente, pois a prática de comissionamento correcto das instalações não faz parte do hábito do nosso mercado, o que leva a que os requisitos não passem do papel. Não basta a existência de legislação, normas e guias; é necessário efectuar os ensaios para garantir que as instalações cumprem os caudais de projecto; é necessário verificar que todos os requisitos estão satisfeitos e isto deve ser feito de forma periódica. As auditorias são uma estratégia adequada e não podemos permitir que “um determinado grupo económico” influencie a legislação ao ponto de comprometer o papel do Estado na defesa da saúde pública.
Talvez a periodicidade das auditorias tenha de ser repensada, assim como a existência de vários tipos de auditorias, consoante estarmos perante edifícios novos, ou grandes remodelações, ou perante edifícios existentes, ou se é ou não, a primeira auditoria. Mas tem de haver auditorias para garantir que cada edifício cumpra os requisitos impostos pela RT.
Reduzir a QAI a uma mera medição e fiscalização de alguns parâmetros físico-químicos é ignorar por completo a realidade da construção e do funcionamento dos edifícios.
A qualidade tem de ser construída. Não é possível termos uma boa QAI se descurarmos a higiene na montagem de todos os componentes da ventilação com a sua correcta selagem durante a obra. Os interiores dos tectos falsos onde existem equipamentos têm de ser devidamente tratados e isentos de restos de construção. O isolamento térmico tem de ser contínuo para evitar condensações e derrames que, para além da degradação dos materiais, podem ajudar à amplificação de fungos e bactérias. Os alçapões de acesso aos equipamentos, além da adequada localização, devem ter as dimensões necessárias para as correctas higienização e manutenção desses equipamentos. Para impedir que o ar extraído se misture com o ar novo, é necessário manter as distâncias adequadas entre as entradas e as saídas. Após a construção, tem de se manter os edifícios a operarem correctamente e garantir uma manutenção eficaz para que os ocupantes possam viver de forma saudável.
“A qualidade tem de ser construída. Não é possível termos uma boa QAI se descurarmos a higiene na montagem de todos os componentes da ventilação com a sua correcta selagem durante a obra.”
Sem auditorias à QAI, desde 2013, a situação de salubridade dos edifícios tem vindo a degradar-se – como é o caso dos edifícios multifamiliares. Quer nos edifícios existentes, quer nos novos, verifica-se uma deficiente ventilação das habitações, sem entradas adequadas de ar novo e com ventiladores centralizados de exaustão de cozinhas e de instalações sanitárias a funcionarem 8 760 horas por ano, o que, apesar das pequenas potências em causa, provocam grandes impactos na utilização de energia. Os projectos de ventilação ou são inexistentes ou deficientes, apesar da Portaria 701-H. Nos edifícios em que a exaustão de cozinhas é descentralizada, os exaustores só cumprem a sua função se abrirem as janelas; caso não o façam, arriscam-se a aspirar o ar pelas condutas de exaustão das instalações sanitárias. A instalação de acumuladores para produção de água quente sanitária por bomba de calor incorporada também não está a ser adequadamente implementada, uma vez que os seus caudais de ventilação são ignorados. Na instalação de unidades de recuperação de calor centralizada por prumada (exaustão de instalações sanitárias vs. admissão de ar novo), para além de ser uma prática frequente, o facto de as unidades não cumprirem as distâncias entre entradas de ar novo e saídas de exaustão levanta problemas quando se considera a sua intermitência de funcionamento.
As auditorias são uma forma de se conseguir ultrapassar tudo isto.
As conclusões expressas são da responsabilidade dos autores.