As cooperativas de energia são um modelo ainda desconhecido da maioria dos cidadãos e do mercado da energia. Não deveríamos estar a avançar mais rápido?
Ao olhar para onde os membros da REScoop.eu e da federação estão, pode observar-se que o movimento está principalmente presente no Noroeste da Europa e não no Sul da Europa. Na Europa Oriental e nos Balcãs, as iniciativas ainda podem ser contadas com duas mãos. De facto, nós, como REScoop.eu e os nossos parceiros da Community Power Coalition [Coligação Comunitária de Energia, uma iniciativa que reúne cerca de 40 associações europeias ligadas a cooperativas de energia, redes de autoridades locais, indústria de energia renovável, ONGs ambientais, etc.], estamos convencidos de que a transição energética, de energia fóssil e nuclear para energia renovável, só será bem-sucedida se a maioria dos cidadãos europeus tiver pelo menos a oportunidade de participar através de uma comunidade de energia (CER).

As cooperativas estão associadas aos conceitos de democracia e cidadania. Poderão fazer parte da resposta à pobreza energética numa perspectiva de mitigação e prevenção?
É importante que a maior parte dos europeus possa participar na transição energética para que esta seja bem-sucedida, incluindo nomeadamente as pessoas em situação de pobreza energética. Alguns dos nossos membros [da REScoop.eu] já actuam activamente no combate à pobreza energética na sua comunidade, muitas vezes em colaboração com as autoridades locais. Isto acontece, por exemplo, no projecto CEES – Community Energy for Energy Solidarity, que visa validar e explorar mecanismos de solidariedade que, no seio de comunidades de energia, alavancam a justiça energética e aliviam a pobreza energética. Mas também é crucial que as cooperativas de energia possuam capacidade de produção de energia renovável, pois isso permite-lhes fixar o preço da electricidade, do aquecimento e do arrefecimento para os seus membros. Durante a recente crise dos preços da energia, após a invasão russa da Ucrânia, a maioria dos nos- sos membros [que são somente produtores] ganhou muito dinheiro, enquanto os poucos que são apenas fornecedores passaram por momentos difíceis. Aqueles que são produtores/fornecedores e mantiveram a produção e o fornecimento em equilíbrio, como a cooperativa Ecopower na Bélgica (Figura 1), conseguiram proteger os seus membros dos preços de electricidade excessivamente elevados associados aos preços do gás.

Qual o modelo de negócio associado? A vantagem para os cidadãos está apenas relacionada com facturas de energia mais baixas e custos controlados?
Os nossos membros têm actividades muito diversas e, consequentemente, modelos de negócio diferentes. Aqueles que produzem energia renovável e a vendem a fornecedores oferecem aos seus membros um dividendo sobre as suas acções e, eventualmente, um retorno sobre um empréstimo ou uma obrigação que tenham facilitado à sua cooperativa. Muitas vezes, também gastam parte dos seus lucros na sua comunidade. As que apenas fornecem energia renovável ou oferecem serviços fazem-no a preço de custo (não obtêm lucros).

Existem vantagens em termos da economia local e do desenvolvimento territorial?
Se as cooperativas de energia puderem deter a produção local de energia, o retorno mantém-se local. A investigação mostra que o retorno para a economia local é até oito vezes superior ao dos promotores externos de projectos de energias renováveis.

Como é que a dimensão das cooperativas pode influenciar as vantagens associadas a este modelo?
As cooperativas maiores podem empregar pessoas, o que é uma vantagem em si, mas também há outros ganhos que têm a ver com a possibilidade de se desenvolverem mais projectos e com a capacidade de se agir mais rapidamente quando surgem oportunidades.

Faz sentido que as cooperativas olhem para fontes de energia renovável diversificadas?
Sim, e, de facto, é isso que fazem. As REScoops [CER e comunidades ou cooperativas de energia lideradas por cidadãos] lidam com energia fotovoltaica, eólica, solar térmica, micro-hídrica, biomassa, eficiência energética, flexibilidade energética, partilha de veículos eléctricos, …

Que outros sectores existem para além dos edifícios quando falamos neste modelo?
As principais actividades das cooperativas de energia são a produção de energia renovável – [através de] fotovoltaico em edifícios públicos, fotovoltaico em terrenos, projectos eólicos, aquecimento (e arrefeci- mento) urbano, soluções micro-hídricas, cogeração, biomassa, etc. – e o fornecimento de electricidade e aquecimento renováveis, a distribuição de electricidade e calor, …

A questão da eficiência energética e da redução das necessidades energéticas do edifício é um tema importante também para estas cooperativas?
Claro que sim. Cooperativas de energia lideradas por cidadãos por toda a Europa estão a oferecer, cada vez mais, serviços de renovação de edifícios aos seus membros e às suas comunidades. Algumas das razões têm a ver com a necessidade de reduzir o consumo de energia nos edifícios como factor crucial para combater a crise climática ou com o potencial de investimento na comunidade e no combate da pobreza energética. Outras fizeram-no a pedido dos seus membros que querem reduzir os seus custos de energia e melhorar a qualidade das suas casas.

Existem já milhares de cooperativas na Europa. O que é que distingue os vários países nesta corrida?
O nosso movimento está mais desenvolvido no Noroeste da Europa do que no Sul da Europa, e quase ausente na Europa Oriental e na maioria dos países dos Balcãs. Isto tem a ver com a história e a política. A ausência ou presença de confiança entre as pessoas e em relação às suas autoridades é crucial.

A legislação europeia ajudou?
Ainda é cedo para avaliar, mas podemos ver que já está a ocorrer uma grande dinâmica. Na Alemanha, assistimos a uma nova onda de criação de cooperativas de energia após a transposição e aplicação das directivas.

A Alemanha é um exemplo nessa matéria?
Sim, sem dúvida.

Porque é que Portugal ainda está tão atrasado?
Talvez porque em Portugal as autoridades pensem que as comunidades e/ou cooperativas de energia sejam algo pequeno.

Como fundador e líder da REScoop.eu, como caracteriza este sector em termos de oportunidade e crescimento na Europa?
O potencial é grande, se as oportunidades que a Europa criou para as comunidades de energia forem implementadas pelos Estados-Membros. Até 50 % da electricidade de que necessitamos até 2050 poderá ser produzida pelos cidadãos individualmente em casa (com fotovoltaico nos seus telhados) ou colectivamente em comunidades de energia. Em Setembro de 2016, publicámos, em conjunto com as entidades Friends of the Earth Europe, EREF – European Renewable Energies Federation e Greenpeace, o relatório Putting citizens at the heart of the energy transition, que aborda o potencial dos cidadãos na transição energética europeia.

Uma das bandeiras da REScoop.eu é incluir comunidades de energia renovável desenvolvidas especificamente por cidadãos e não por outros grupos, como empresas. Faz sentido que estes diferentes “modelos” de comunidades coexistam?
Se lermos as considerações anexas à directiva de energia renovável RED II, verificamos que as comunidades de energia renovável são entidades jurídicas de cidadãos, eventualmente com as suas autoridades locais e as suas pequenas e médias empresas (PME) locais cujas actividades principais não sejam no sector da energia. Infelizmente, a própria definição pode ser interpretada no sentido de permitir a criação destas comunidades só com municípios ou só com PME. Não somos contra a existência de serviços públicos ou de grupos de PME ou de empresas de maior dimensão que façam coisas semelhantes, mas devem ter a sua própria definição.

A ambição da Rescoop é ter 50 % da produção de energia nas mãos destas cooperativas de cidadãos. Existem dados sobre a situação actual na Europa?
Não dispomos de muitos dados. Na Bélgica, as cooperativas de energia representam cerca de 4 % da produção de energia renovável. Nos Países Baixos e na Dinamarca, o valor é superior, mas temos de acelerar nos próximos anos, porque se o retorno da produção de energia renovável não beneficiar os cidadãos será difícil fazer com que a transição energética seja bem-sucedida.

Esteve na celebração dos dez anos da Coopérnico, em Lisboa. No evento, mencionou a necessidade de as cooperativas terem os seus próprios instrumentos de financiamento… Como é que isso pode acontecer?
Temos um projecto financiado pela União Euro- peia precisamente sobre este tema. Chama-se LIFE ACCE – Access to Capital for Community Energy e tem como objectivo desenvolver e escalar ferramentas de financiamento colectivo para cooperativas de energia em toda a Europa. Temos também um projecto, o REScoop MECISE, que mobiliza cidadãos e municípios na transição para um sistema energético mais sustentável e descentralizado, através do qual procuramos estabelecer um serviço de “facilitação financeira” para as comunidades de energia de cidadãos em toda a Europa. Na hiperligação https://www.rescoop-mecise.eu/financial-services, é possível ver que esta- mos, finalmente, a iniciar o financiamento de projectos concretos em 2024.

Durante a crise energética, a Ecopower, a cooperativa belga em que está envolvido, conseguiu fornecer energia aos seus membros a preços mais competitivos do que outros fornecedores e teve também muita procura por parte de pessoas que queriam aderir. Poderão estes tempos difíceis de maior necessidade ser simultaneamente uma oportunidade e um argumento a favor das cooperativas?
Sim, nesses momentos podemos mostrar a nossa resiliência e força para proteger os nossos membros dos excessos do mercado neo-liberal (Figura 2).

Como começou a sua cruzada nesta área?
Quando comprámos um velho moinho de água abandonado em Rotselaar [município na Bélgica] e encontrámos todo o tipo de obstáculos…