Responsáveis por cerca de 40 % do consumo de energia na Europa, os edifícios são eixos centrais para a transição energética. Descarbonizar o aquecimento e arrefecimento é um dos grandes desafios que se impõem ao sector. Luís Monteiro é responsável pelo desenvolvimento de novas soluções para climatização e águas quentes da Bosch e, em entrevista, aponta alguns dos caminhos a seguir: a electrificação é incontornável, mas soluções inovadoras, como o hidrogénio, abrem também outros horizontes.
Estamos num momento decisivo para a descarbonização do sector dos edifícios. Qual é, no seu entender, o maior desafio?
Diria que o maior desafio é o de fazer esta transição. Todos concordamos que esta transição é uma necessidade, e vai acontecer tudo muito depressa. [Isto é] Como é que – actualmente e em particular a nossa empresa em Aveiro, que depende muito de produtos que são à base de combustíveis fósseis – temos de transitar rapidamente para produtos que não emitem emissões de CO2 ou que são, pelo menos, o mais neutros possível ao nível das emissões de CO2. O principal caminho para isto é o da electrificação.
A electrificação parece uma tendência incontornável, mas é o único caminho?
Não, entendemos que não é o único caminho, embora concordemos que é a via prioritária. Isto porque, no futuro, cada vez mais as fontes de energia neutras em emissões serão a partir de fontes renováveis intermitentes, como a solar fotovoltaica, a eólica e também as hídricas. Por isso, sendo a electricidade a principal fonte verde no futuro, faz todo o sentido que a utilização de energia nos edifícios seja também electricidade. A somar a isto, há ainda a perspectiva da eficiência dos equipamentos e, quando falamos de bombas de calor, estas têm uma eficiência bastante elevada – são imbatíveis –, e por aí [a electrificação] é também uma via prioritária. No entanto, esta não é uma solução para todas as instalações. Uma das formas de se acelerar esta transição – até porque a electricidade “verde” não vai acontecer amanhã, vai levar ainda muito tempo para que toda a nossa electricidade seja neutra em emissões – passa por outras alternativas que é necessário colocar à disposição dos utilizadores.
No caso do aquecimento, estamos a falar de quê?
Se falarmos de produtos fósseis, e aqui falamos de caldeiras e esquentadores a gás que, na área do aquecimento, são os produtos que desenvolvemos e comercializamos, as alternativas seriam o biometano, o biopropano nas instalações que não estão ligadas à rede, no entanto, essa via também tem algumas limitações – estamos a falar de um combustível bio, que, algures em função das quantidades, pode afectar a cadeia alimentar e a biodiversidade. Daí, aparece o hidrogénio.
O hidrogénio tem potencial para ser uma alternativa?
Entendemos que sim. E porque temos a necessidade de ter uma alternativa? Primeiro, é uma forma de acelerarmos a transição. Se usarmos os equipamentos que já estão actualmente instalados em casa das pessoas e conseguirmos fornecer um combustível que é compatível com esses equipamentos, tanto melhor, porque já estamos a actuar naquilo que está instalado e as pessoas não sentem que têm de comprar equipamentos novos. Isso, de alguma forma, acelera o processo de transição. Ainda assim, é preciso que a energia verde esteja disponível, quer sejam os biocombustíveis, quer seja o hidrogénio. O hidrogénio tem a mais-valia de ser um vector energético que pode auxiliar a electrificação.

Em que medida?
Se tivermos fontes de energia que são renováveis e intermitentes, elas não vão estar sempre disponíveis. Dito de outra forma, nós não controlamos o sol nem o vento, mas queremos controlar os nossos consumos – queremos ter a água quente ou aquecer o espaço a qualquer hora do dia, em função das nossas necessidades, e a energia tem de estar disponível. O hidrogénio é visto como um vector que pode auxiliar a descarbonização do sector energético porque vai permitir que, nos momentos em que há excesso de energia renovável, este seja armazenado sob a forma de hidrogénio e esse hidrogénio pode, depois, ser consumido como um vector energético alternativo.
Haverá espaço para outras tecnologias, como, por exemplo, o solar térmico?
Claramente, o solar térmico é aquele tipo de solução que muitos especialistas chamam de no brainer. É de caras, não é preciso electricidade, temos água quente disponível, e devíamos privilegiar essa via. Em Portugal, há já algum tempo que os novos edifícios têm de ter solar térmico ou, em alternativa, bombas de calor. Há estudos que mostram que, em função da localização – e refiro-me só a Portugal –, há zonas mais a Norte em que eventualmente uma bomba de calor até pode ser mais vantajosa comparativamente ao painel solar. O painel solar térmico fornece energia quando há sol, mas, quando não há, se estivermos a falar de instalações com termoacumulador no telhado, há uma reserva de água que está em contacto com o ar exterior, que pode ser frio no Inverno, e perde calor e, em determinados momentos, tem de haver um apoio eléctrico ou a gás. Apesar de ser uma excelente solução, ainda assim, se compararmos com uma bomba de calor, dependendo da localização do país, são [soluções] muito equiparadas.
Em termos de custo, considera o solar térmico uma solução competitiva?
Falando nessa perspectiva, um painel solar térmico com termoacumulador representa um investimento considerável, talvez entre os 1500 e 2000 euros. No final, depende muito das necessidades de consumo de água quente sanitária. Se for uma família que consuma muita água quente, claramente é uma solução muito interessante. Se não, pode não justificar o investimento à partida. Nem todas as pessoas têm a possibilidade de comprar um equipamento tão caro. Para a realidade de Portugal, é igualmente vantajosa, tendo o inconveniente de ser um investimento grande à partida – tal como a bomba de calor. Em Portugal, não é habitual que as pessoas pensem na rentabilização do investimento quando fazem uma compra. Muitas pessoas têm dificuldades financeiras e, quando compram, optam pela solução mais barata, mesmo que, no longo prazo, seja a mais cara. Mas o Governo está agora a implementar medidas para apoiar esse investimento inicial e isso ajuda as pessoas e a transição energética.
Voltemos ao hidrogénio: faz sentido para fins de aquecimento?
É uma questão que gera muita controvérsia e há muitas pessoas que dizem que não. Nós, Bosch, achamos que faz sentido por causa das alternativas e da capacidade da electrificação responder às necessidades das utilizações. Há um caso muito prático e fácil de perceber, embora não seja a realidade portuguesa: em países como a Inglaterra, as pessoas têm caldeiras de aquecimento a gás e as casas não são muito bem isoladas e isso requer uma potência de aquecimento relativamente elevada e também soluções de aquecimento de temperatura elevada. Isso quer dizer que, para conseguirem aquecer o espaço, [as pessoas] têm radiadores dispostos na casa que precisam de temperaturas de água na ordem dos 80°. As bombas de calor não têm rendimentos elevados quando têm de aquecer a água a 80°, elas funcionam bem com temperaturas baixas, da ordem dos 30°/40°. Uma das soluções ideais são os pisos radiantes, mas, não sendo [possibilidade], tem de ser radiadores de baixa temperatura. Acontece que, quando o utilizador tem uma caldeira a gás e se vê confrontado com a alternativa de colocar uma bomba de calor, que é uma solução obviamente mais eficiente, ele não só vai ter de fazer um investimento mais elevado (num factor de 3, 4 ou 5) numa bomba de calor que ocupa mais espaço e mais volume, como esta pode não ser compatível com o sistema de aquecimento de espaço. [Nesse caso, o utilizador] Vai ter de trocar os radiadores por radiadores de baixa temperatura! A factura dispara, pode trocar-se a caldeira por 2000 ou 3000 euros, mas a alternativa é gastar 12 mil euros, não é fácil. Acrescem ainda limitações técnicas – por exemplo, se a casa não for bem isolada, as bombas de calor podem não conseguir aquecer o espaço – e os hábitos das pessoas. Os hábitos podem ser contornados, mas o investimento inicial e a capacidade de aquecimento são questões mais complicadas. Há alturas em que não dá e é preciso uma alternativa e, por isso, pensamos que uma caldeira a hidrogénio é uma solução que faz sentido para o cliente, mesmo que menos eficiente.
Quando isso poderá ser uma alternativa disponível no mercado?
Já temos um demonstrador em Inglaterra. Em Portugal, só este ano é que vamos começar a fazer trabalho de desenvolvimento. Apontamos industrializar esse demonstrador em 2025, ou, talvez, um pouco antes. É uma solução que estará disponível [nessa altura] comercialmente e que as pessoas poderão comprar. Eventualmente, em 2025, ainda não haverá redes de hidrogénio ou, havendo, será em projectos piloto, no entanto, a nossa estratégia – e que penso que é partilhada por concorrentes – é ter caldeiras H2-ready, isto é, que estão preparadas para, no futuro, funcionar com hidrogénio. Vão, primeiro, ser instaladas com gás natural, mas, assim que a instalação permita o abastecimento de hidrogénio, a caldeira pode ser convertida para hidrogénio mediante a intervenção de um técnico.
Essa será uma solução adequada ao mercado nacional?
Sim, será uma boa solução, embora, em Portugal, soluções como o ar condicionado possam ser uma opção a privilegiar. No futuro, será mais provável ver caldeiras a hidrogénio em Inglaterra do que em Portugal.
Qual é, então, a melhor solução para o caso português para fazer esta transição?
Não há uma solução ideal, porque depende caso a caso. Temos de olhar cada instalação na perspectiva individual. Na nossa visão, as novas construções devem privilegiar bombas de calor/ar condicionado. Essa deve ser a via prioritária. Em instalações existentes, em que a pessoa se vê obrigada a trocar o equipamento, vai ser caso a caso. Haverá situações em que a caldeira a hidrogénio faz sentido e outros em que até se consegue fazer a conversão para ar condicionado, e, depois, dependerá também das preferências das pessoas. Para nós, é uma abordagem multitecnológica, em função do tipo de instalação e necessidades das pessoas.
“Uma das formas de se acelerar esta transição – até porque a electricidade “verde” não vai acontecer amanhã, vai levar ainda muito tempo para que toda a nossa electricidade seja neutra em emissões – passa por outras alternativas que é necessário colocar à disposição dos utilizadores.”
Tal exige que os profissionais do sector, quer projectistas, quer instaladores, tenham um conhecimento muito rigoroso das opções disponíveis no mercado.
Claramente, e este não é um assunto fácil, tem alguma complexidade e saber adequar a melhor solução ao tipo de instalação e necessidades individuais de cada família vai exigir claramente mais informação e conhecimento das pessoas e dos técnicos.
Estão a fazer alguma acção nesse sentido?
Neste processo formativo, existe uma área na nossa organização que fala com os técnicos ou com quem desenvolve o produto. A pessoa responsável adquire o conhecimento – falamos na perspectiva de produto, mas podemos falar também de sistema com vários produtos – e tem a responsabilidade de formar outras pessoas dentro da Bosch, que vão, depois, formar os técnicos.
Olhando para as metas, tendo em conta os regulamentos em vigor, considera que são suficientes para levar a cabo a transição necessária?
É uma pergunta difícil. Do que conheço da Lei do Clima, é um documento com princípios, mas que não tem para já uma legislação concreta – imagino que será derivada daí. O caminho que está a ser apontado parece-nos correcto, com a prioridade para a electrificação, e isso está alinhado com a nossa visão. É mencionado também que, nalguns sectores, a electrificação pode não ser a via ideal e, nessas situações, devem utilizar-se vectores energéticos alternativos como hidrogénio, e aqui nós também estamos alinhados. A informação que tenho não permite chegar a uma conclusão sobre como isso vai acontecer na prática para que se consigam os objectivos de redução de 55 % em 2030 e 95 % em 2050.
Dada a importância da vossa unidade para o grupo, a localização em Aveiro tem contribuído de alguma forma para uma maior inovação?
Diria que podemos encontrar este tipo de ecossistema em várias regiões do país, mas, em concreto, nesta região, temos a vantagem de ter uma universidade bastante dinâmica, com crescimento em várias áreas da tecnologia e colaboramos sempre que possível. Há pouco tempo, tivemos um projecto em que estudámos soluções de novas tecnologias para casas inteligentes e acabámos de submeter uma candidatura ao Portugal 2020 para o desenvolvimento diferentes tecnologias no sentido de garantir a transição energética, em que as bombas de calor, os esquentadores e caldeiras a hidrogénio são áreas de estudo e investigação, assim como a parte dos sistemas, da inteligência da casa. Já não é só o IoT (internet of things), mas o AIIoT, que é a inteligência artificial com a internet of things. É nestas áreas que queremos fazer uma grande aposta.

A digitalização é crucial nesta transição?
Sim, e é um desafio extremo. Há quem seja 100 % a favor da electrificação, pense que o hidrogénio não faz sentido e defenda que, num sector energético completamente digitalizado, no qual todos os equipamentos que produzem e consomem energia estão interconectados, se pode gerir a intermitência da energia e fazer com que, por exemplo, os carros eléctricos, quando há excesso de energia, acumulem energia nas baterias, quando há falta de energia, eles forneçam energia à rede, privilegiar os consumos quando há disponibilidade de energia, evitar quando há falta, etc., e que esta rede inteligente, quando estiver toda ligada, irá funcionar.
Nesse cenário, não precisaríamos do hidrogénio?
Não, mas tenho dificuldade em acreditar nisso. Mas claramente que a digitalização, com ou sem hidrogénio, vai ter um papel essencial para gerir a questão da intermitência de energia.







