Luís Malheiro, projectista, faz-nos um balanço do mercado e das dificuldades que hoje se sentem. Para este especialista, que dispensa mais apresentações, o facto de as câmaras municipais terem regras próprias de licenciamento “é um péssimo princípio”. A falta de definição dos caudais de ar novo por metro quadrado, e não por pessoa, é outro tema prioritário.
Vivemos tempos difíceis e desafiantes. Está a faltar-nos tempo para reflectir sobre o que é o essencial?
É verdade. Nunca, como hoje, se colocaram tantos desafios à sustentabilidade do ambiente construído, designadamente quanto à descarbonização, que estabelece metas muito exigentes para 2050, e, nomeadamente, para Lisboa, Porto e Guimarães, que aceitaram estar no grupo da frente como exemplos [já em] 2030.
Temos muito pouco tempo e, também por isso, a abordagem tem de ser mais profunda e competente, pois a sustentabilidade de que toda a gente fala, e poucos sabem do que falam, tornou-se numa “religião”, onde quem não cumprir os preceitos é um pecador e vai para o inferno (as alterações climáticas e a destruição do planeta). Os políticos devem, pois, ser os motores e os facilitadores desta profunda atitude de mudança, marcando os objectivos que a evidência científica disponibiliza e criando as ferramentas financeiras para tornar possível que o mercado funcione.
É, no entanto, indispensável que estabeleçam o diálogo com os técnicos, com as respectivas associações profissionais e também com as agências de energia sobre estratégias e medidas concretas a definir, e não estabeleçam objectivos parciais inviáveis técnica e economicamente, percebendo que este assunto é fundamentalmente uma questão técnica e tecnológica, promovendo uma atitude que inclua e motive arquitectos e engenheiros, promotores, fabricantes e construtores, que, todos os dias, no terreno, têm o desafio de fazer melhor. É necessário que cada um dos actores tenha a serenidade, a reflexão e a determinação indispensáveis.
Fará sentido as câmaras municipais terem regras próprias?
Trata-se de exigências de licenciamento. É um péssimo princípio, pois normalmente estas exigências estão desenquadradas da regulamentação no seu conjunto, não sendo, na maior parte das vezes, compatíveis com outras exigências regulamentares, confundindo o mercado, sobrepondo-se às agências de energia e aumentando extraordinariamente os custos de construção.
Estamos a dar resposta ao que se pede nos edifícios com necessidades quase nulas de energia (NZEB)?
Na actual regulamentação, para que um edifício seja NZEB, deve ter uma classe energética mínima de B (isto é, um edifício NZEB não têm de ser A), sendo o valor de RIEE (razão entre o IEE do edifício em causa e o do edifício de referência, em energia primária total) </= 0,75; para edifícios com consumos significativos de água quente sanitária (AQS), é obrigatório que, pelo menos, 50 % dos consumos sejam satisfeitos por energia primária renovável), e a energia primária fóssil regulada do edifício seja igual ou inferior a 0,75 da energia fóssil regulada do edifício de referência.

No entanto, por razões de competitividade no mercado imobiliário, os promotores procuram quase sempre que a classificação energética seja A. Até agora, temos conseguido atingir os objectivos, sempre associados a investimentos adicionais significativos. Os edifícios NZEB já estão, de forma indiscutível, no mercado. No futuro, quando passarmos de energia para emissões, na comparação dos edifícios, será bem mais difícil conseguirmos edifícios “zero emissions”. Poderá, no entanto, ser possível que os promotores contratualizem com entidades fornecedoras ou cooperativas certificadas de energias renováveis parte do seu fornecimento, permitindo eventualmente reduzir as emissões de forma mais segura.
Os donos de obra estão dispostos a “financiar” essa religião de que falou?
Alguns estão, porque não têm outra hipótese, uma vez que há muita concorrência no sector imobiliário; mas estamos certos de que terá de haver incentivos financeiros a fundo perdido que permitam compensar os custos elegíveis.
Temos também os certificados internacionais e os selos de sustentabilidade.
Esse é outro problema, e ainda bem que falou dele. Eu estava a falar da classificação energética portuguesa, da regulamentação. Nalguns casos, também por razões de competitividade, foi decidido certificar os edifícios por avaliações LEED/BREAM/WELL, que, adicionando outras perspectivas, podem contribuir positivamente para a atractividade dos edifícios no mercado, não se confundindo, no entanto, com as exigências regulamentares, a que, em parte, se sobrepõem. Entendemos, no entanto, que são universos separados e que, apesar do seu interesse comercial, as questões da sustentabilidade e do bem-estar devem ser avaliadas com critérios e indicadores de base totalmente quantitativos e não apenas qualitativos.
Quer dar alguns exemplos?
Estou neste momento muito preocupado com o risco relativo de infecção nos edifícios e tenho insistido muito para que se definam os caudais de ar novo por metro quadrado e não por pessoa. O regulamento português não é muito exigente neste ponto, quando fala em 24 metros cúbicos por hora por pessoa para escritórios. Outro exemplo fundamental é a quantificação da energia incorporada na construção, tema que defendo desde 2006 e que finalmente é mencionado na nova directiva [para o desempenho energético dos edifícios].
Os valores mínimos definidos são muito baixos?
Claro. Exactamente por isso tenho defendido que estes valores sejam superiores e reguláveis em função dos valores de CO2 nos diferentes espaços.
Foi um retrocesso? A prática apontava para 35.
Exactamente, andámos para trás.
Falou no conceito NZEB como sendo, agora, a base para tudo.
Neste momento, é obrigatório. Mas voltando à pergunta anterior sobre este tema, acho que os NZEB já estão no mercado.
“(…)É muito importante não esquecer um conjunto significativo de outras estratégias, como o enorme potencial de free cooling (que aponta, em Lisboa, para uma capacidade de utilização em 55 % das horas do ano), o aproveitamento do potencial geotérmico, o aproveitamento da inércia estrutural dos edifícios, etc.”
O que está na cabeça dos donos de obra quando querem, hoje, fazer um escritório? Estão a pagar mais do que pagavam há uns anos? O que mudou?
Não há dúvida de que os clientes estão a pagar muito mais para ter um edifício com classificações de topo. Agora, o NZEB com classe B, apesar de tudo, é menos exigente do que o NZEB A ou A+.
Conseguimos ter uma ideia de quanto representa a mais a classe A ou A+, em termos de investimento?
Não sei, pois depende muito da orientação das fachadas e do tipo de sombreamentos a prever, da área disponível nas coberturas para a instalação de painéis fotovoltaicos e do conceito para as instalações, designadamente para a climatização.
O fotovoltaico é a resposta aos NZEB?
Sim, é a energia renovável mais simples de utilizar, mas é muito importante não esquecer um conjunto significativo de outras estratégias, como o enorme potencial de free cooling (que aponta, em Lisboa, para uma capacidade de utilização em 55 % das horas do ano), o aproveitamento do potencial geotérmico, o aproveitamento da inércia estrutural dos edifícios, etc.
Qual é a maior dificuldade que tem sentido em relação a este processo dos NZEB?
Os donos de obra já interiorizaram que tem de ser [feito], porque é exigido pela regulamentação. A nossa maior preocupação é conseguir o objectivo com o menor investimento adicional (CAPEX) [possível] e motivar a restantes equipa de projecto a considerar soluções convergentes.
O que distingue, na prática, um NZEB A de um NZEB B? É apenas a quantidade de energia renovável que é produzida localmente?
É [um aspecto] muito importante, mas formalmente a grande diferença é que, para os edifícios de classe A, o objectivo é que o valor de RIEE deverá ser </= 0,50.
Um NZEB B deverá consumir mais energia do que um NZEB A?
Não obrigatoriamente. O que tem de acontecer é o valor de RIEE ser menos exigente (</= 0,75) e não </= 0,50, quando se trata de uma classe A.
E a geotermia?
Para assumirmos que o potencial geotérmico é uma energia renovável, este aproveitamento tem de ser equilibrado. Não se pode só arrefecer o terreno ou só aquecer o terreno. Por exemplo, em Lisboa, as cargas térmicas de aquecimento são muito menores do que as cargas de arrefecimento, o que significa que o aquecimento do terreno é muito maior do que o arrefecimento, do que resulta um evidente desequilíbrio, que, ao fim de uns anos, poderá saturar o terreno, deixando de funcionar.
“Hoje, temos máquinas com níveis de eficiência impossíveis de pensar há dez anos. Os projectistas (arquitectos e engenheiros) têm acompanhado esta evolução.”
O foco não estará demasiado nas renováveis, como solução para tudo, e pouco no resto? Não estamos a desvirtuar aquilo que foi pensado há mais de 20 anos?
De certo modo, é verdade, pois é muito difícil satisfazer as exigências que estão em cima da mesa sem as energias renováveis. Mas devemos tudo fazer para, antes de as considerar, reduzir os consumos com as medidas passivas ao nosso dispor, na protecção da envolvente, e com as medidas activas, quanto à eficiência dos sistemas.
O que nos falta?
Às vezes, perseverança; outras vezes, paciência, mas sobretudo apoio e confiança das associações profissionais e, em particular, das agências de energia, num esforço comum de transmissão dos objectivos aos decisores políticos.
Em breve, vamos passar para os Zero Emission Buildings. Considerar a energia incorporada pode ser uma boa estratégia para recuperar a credibilidade destes processos que se querem verdadeiramente sustentáveis?
Exactamente.
O nosso problema não é a tecnologia?
O nosso problema não é a tecnologia, embora esperemos sempre mais. Os sistemas têm de ser cada vez mais eficientes, e acho que os fabricantes têm feito um esforço muito grande nesse sentido. Hoje, temos máquinas com níveis de eficiência impossíveis de pensar há dez anos. Os projectistas (arquitectos e engenheiros) têm acompanhado esta evolução.
Existe ainda a questão de se querer economizar por decreto, por alteração do preço. Só com a mudança de comportamentos e a consciencialização das pessoas é que isso será possível, mas não vemos os nossos governantes tomarem nenhuma iniciativa nesse sentido. Concorda?
Tenho feito alguns estudos de avaliação de sustentabilidade, nos quais, para além dos regulamentos, se estabelece uma avaliação não comercial, mas estritamente de engenharia, e um dos indicadores que considero como uma medida que pode efectivamente ter impacto é a alteração de comportamentos, sugerindo prudentemente uma melhoria correspondente a 10 % no consumo geral, através de estratégias de comunicação interactiva com os utilizadores, fornecendo informação sobre o desempenho e estabelecendo metas e formas de as conseguir. Tem de ser pela informação e pela pedagogia; não pode ser pelo catecismo.
Os últimos estudos apontam para 40 %.
Fala-se em mínimos de 25 %, mas eu acho que ninguém acredita. Avanço com 10 % para introduzir o tema e servir de base.
Como vê um edifício zero emissões daqui a oito anos? Que edifício é esse?
Como [o] fruto de uma grande reflexão à escala das cidades, em diálogo muito forte com os políticos, como representantes dos cidadãos, para definir as cidades e os edifícios que queremos. A centralização da produção de energia térmica é um bom caminho, já percorrido em Portugal, no Parque das Nações, e do qual podemos tirar informação muito útil com os dados de 24 anos de exploração.
Estamos a falar de uma rede de distribuição de frio e de calor na zona da Expo’98?
Exactamente, e é a única que existe [no país].
E como conseguimos salvaguardar a qualidade? Pela aplicação da regulamentação?
Sim, mas não só. Há muitas outras oportunidades de ir além da regulamentação, antecipando a evolução desta, o que permitirá, caso a caso, equacionar as melhores soluções com o menor investimento
A única coisa que se pode ir fazendo é intervir e ter influência nas obras, porque, de resto, é difícil. Concorda?
Infelizmente essa é a nossa base principal de intervenção, mas existem outras [coisas], como esta entrevista e esta revista, que são exemplos pelos quais vos agradeço, assim como pela oportunidade de transmitir alguma das preocupações que eu e outros colegas vamos tendo.