José Silvestre é professor associado com agregação na Secção de Construção, no Instituto Superior Técnico, e coordena vários trabalhos no CERIS – Civil Engineering Research and Innovation for Sustainability. Para este investigador, o conhecimento e as ferramentas existem e já podemos pensar em dar o passo seguinte: “começar a considerar a pegada de carbono e a energia incorporada de todo o ciclo de vida do edifício.”

Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, actualmente, já é possível calcular a energia incorporada nos materiais de construção na fase de projecto.

Sim, é possível. Aquilo que vinha a ser trabalhado por nós, do lado da investigação, está a tornar-se num tema e numa necessidade para os profissionais da área. Temos tido muitas solicitações, mas é preciso entender este tema nas suas várias escalas para o apresentar aos vários intervenientes que tentamos servir. Para os projectistas que estão a trabalhar para o mercado nacional mas com clientes estrangeiros ou que estão a trabalhar directamente com o mercado internacional, uma primeira motivação para fazer a avaliação ambiental do ciclo de vida (ACV) de um edifício, que inclui não só a energia incorporada, mas também a pegada de carbono, aparece quando este edifício vai ter uma certificação ambiental como o BREEAM ou o LEED. Nestes casos, o sistema dá uma pontuação adicional sobre este cálculo. O sistema de certificação português LiderA não motiva tanto este tipo de avaliação.

Quando os projectistas procuram demonstrar essas opções de menor impacte ambiental estão a ir até onde? Até onde pode ir uma análise deste género?

Os projectistas conseguem fazer uma radiografia do edifício e mostrar que tentaram tomar opções com base na minimização da energia incorporada, se tiverem essa motivação da pontuação adicional. Por iniciativa própria, não há grande interesse, porque não é fácil fazer esse cálculo. É preciso ter e investir num software especializado que lhes forneça e sistematize as bases de dados para saberem qual a energia incorporada em cada um dos componentes da lista de quantidades da construção do edifício. Mesmo que seja só para as especialidades de arquitectura e de estrutura, a lista de quantidades já é significativa. A ideia é terem um software onde sabem que podem ir buscar os valores de impacte para as impermeabilizações, para a estrutura, para os vários tipos de materiais. Tal como atribuem um custo a cada item da lista de quantidades, neste caso, já podem atribuir os valores da energia incorporada e da pegada de carbono. Neste tipo de sistemas de certificação, vão ter, depois, de demonstrar esses valores e diminuir esses impactes.

Estamos a falar de processos voluntários e não obrigatórios. É possível sistematizar a informação que existe e criar metodologias que possam passar a obrigatórias? Qual o próximo passo?

Os softwares que existem são estrangeiros e têm a desvantagem de serem usados dados europeus médios de impacte ambiental para cada material; na maioria dos casos, não têm nada que ver com a realidade nacional, e, por vezes, não espelham as técnicas construtivas que são usadas em Portugal. Temos tido fabricantes portugueses que investem em Declarações Ambientais de Produto (DAP), que são um retrato e um perfil ambiental mais detalhados do produto. Temos o Sistema Nacional de Registo de Declarações Ambientais de Produto para a construção, o DAPHabitat, onde já existem 25 DAP que retratam a produção de materiais em Portugal e que contêm a informação de que os projectistas precisam para caracterizar o impacte ambiental de cada um dos processos construtivos. Esta passagem de um documento bastante complexo para uma base de dados mais fácil e mais útil para o utilizador é mais difícil. Já fizemos trabalhos de investigação e consultoria com mais de 25 produtores nacionais para fazer esses estudos de ACV, mas nem todos chegaram ainda à DAP e nem todos foram ainda registados. Mas, pelo menos, os fabricantes ficaram com uma caracterização do desempenho ambiental do seu produto e também com uma comparação com os outros produtos europeus para poderem comparar as características de desempenho ambiental. Trabalhámos também no desenvolvimento de uma ferramenta dentro do software Revit, mas para os projectistas que trabalham com o BIM (Building Information Modeling) e onde é possível incluir características ambientais em cada um dos objectos BIM e fazer-se esse cálculo ambiental e também económico. Também já adaptámos essa ferramenta para o sistema Level(s) – uma metodologia europeia que permite a medição e a partilha do desempenho ambiental dos edifícios. Os gabinetes de projecto que estão mais sensíveis a esta transição digital para o BIM também estão sensíveis à transição verde e têm mais solicitações nessa direcção.

O BIM pode ser uma boa alavanca?

Pode, mas acabamos por perceber que é um investimento muito grande para os gabinetes de projecto portugueses e só aqueles que têm alguma dimensão e capacidade de competir em termos internacionais é que fazem esse investimento. Nesta nossa transferência de conhecimento, temos, ao mesmo tempo, o objectivo de facultar estes dados nacionais, esta base de dados de uma forma simplificada (carbono e energia incorporada) para os projectistas. Este pode ser um começo de “evangelização” nesta área e um passo muito importante.

“O financiamento do Estado para a reabilitação térmica, por exemplo, tem sido muito reduzido comparado com o de outros países, apesar de haver a indicação da utilização de materiais de base natural ou com conteúdo reciclado (de baixa energia incorporada). Não se fala nas DAP, mas, pelo menos, incentivam-se materiais com conteúdo reciclado para minimizar o consumo de recursos nessa reabilitação térmica.”

Está a referir-se ao trabalho que o grupo PositiveCycle está a desenvolver no Instituto Superior Técnico?

Sim, no âmbito do CERIS, o nosso centro de investigação, que agora tem também um pólo na NOVA e no ITeCons, em Coimbra. Trabalhamos nestas ferramentas para a construção de edifícios, mas também à escala da cidade. Dentro do Revit, já é possível utilizar uma ferramenta gratuita, embora americana. Interessa-nos disponibilizar o máximo possível de dados nacionais.

Quando olhamos para a energia incorporada dessa forma, não estamos a ser um pouco redutores? Não haverá outras dimensões que devem ser tidas em conta para além do fabrico? Inclusivamente, ao privilegiarmos uma dimensão, podemos estar a ser menos eficientes noutras…

Sim, se falarmos num especialista de ACV ou de desempenho ambiental de edifícios, [esta] acaba por ser uma área multidisciplinar e não vai ser um engenheiro civil ou mecânico ou um arquitecto que tem o conhecimento todo para ser especialista nessa área. Tenho formado muitas pessoas nesta área da ACV ambiental, económica e energética. A maior parte já está a trabalhar em gabinetes de consultoria ou em investigação exactamente nesta área e [muitos] acabam por vir de formações muito diferenciadas. Podem vir de licenciaturas em ambiente e fazerem um doutoramento em engenharia civil, por exemplo. Ou ao contrário e, depois, especializam-se na área da sustentabilidade na construção. Há muitas possibilidades.

Falando agora dos edifícios de carbono zero: esta obrigatoriedade não será uma falácia quando consideramos apenas para uma parcela do problema?

A informação deveria estar mais disseminada e deveriam existir mais DAP desenvolvidas pelos fabricantes. A outra dificuldade que acaba por existir tem que ver com os incentivos que o Estado dá. Quando falamos em edifícios de carbono zero, pretende-se que isso seja também conseguido à custa das reabilitações e se, nestes casos, não for possível colocar energias renováveis, temos de investir ainda mais na eficiência energética e na baixa pegada de carbono dos novos materiais. O financiamento do Estado para a reabilitação térmica, por exemplo, tem sido muito reduzido comparado com o de outros países, apesar de haver a indicação da utilização de materiais de base natural ou com conteúdo reciclado (de baixa energia incorporada). Não se fala nas DAP, mas, pelo menos, incentivam-se materiais com conteúdo reciclado para minimizar o consumo de recursos nessa reabilitação térmica. Em Itália, existe um programa de financiamento de 110 % do custo da intervenção; cá, a percentagem de apoio é reduzida e não conseguimos chegar a todos os proprietários que precisam desse financiamento. Há um trabalho grande a fazer na reabilitação e, depois, na parte das exigências. Nos edifícios novos, é diferente. Na revisão da Directiva para o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD), já será obrigatório considerar também todo o ciclo de vida. Em termos de certificação energética, só temos considerado o desempenho energético com exigências de consumo máximo para a fase da utilização. À medida que os edifícios vão ficando mais eficientes, a fase da construção e a parte incorporada vão ganhando importância e mesmo este balanço é importante. Isolar cada vez mais, sim, mas é preciso ter atenção aos recursos que se gastam no isolamento. Aquilo que está em discussão nesta directiva é exactamente que se comece a ter em conta a pegada de carbono e a energia incorporada de todo o ciclo de vida do edifício.

“Na Holanda, já existe um orçamento de carbono por m2 para os edifícios novos, tal como temos para o desempenho energético em termos de kWh por m2, e que vai reduzindo todos os anos. Noutros países, esta área já está implementada para os edifícios públicos.”

Essas variáveis são inevitáveis no nosso Sistema de Certificação Energética (SCE)? E para quando?

Em termos académicos, já tive vários contactos com a ADENE – Agência para a Energia, dando conta de que já temos o conhecimento e as ferramentas para avançar. Em termos de investigação, trabalhamos muito à imagem daquilo que é o SCE. Na certificação energética, temos os vários níveis de desempenho e o benchmarking que é feito para edifícios com vários tipos de utilização, mas estamos a fazer esse trabalho para perceber como podem ser montadas essas várias classes de desempenho e de benchmarking ao nível da pegada de carbono e da energia incorporada. Tanto é possível que já temos exemplos em toda a Europa em que isso está a acontecer. A França já avançou muito e, desde 2022, os franceses já obrigam ao cálculo da pegada de carbono para efeitos de [emissão do] certificado energético.

Na eventualidade de estar para breve, o mercado conseguiria acompanhar se fossem disponibilizadas as ferramentas necessárias?

No caso do SCE, foram disponibilizadas folhas de cálculo e bases de dados com as características genéricas que deveriam ser consideradas para o desempenho térmico de cada material e de cada solução construtiva. No PositiveCycle, temos trabalhado na construção de uma base de dados de soluções construtivas para a envolvente do edifício e, por isso, temos dados ambientais para todo o ciclo de vida de paredes exteriores, coberturas inclinadas e coberturas planas. Temos a capacidade de montar essa base de dados para a envolvente dos edifícios e de complementar com o que já existe ao nível do desempenho energético. No caso francês, eles desenvolveram essa base de dados, e, se for utilizado um material que já tenha uma DAP, usam-se os dados reais desse produto; se não, vão usar-se dados genéricos que podem ser menos rigorosos ou vantajosos. Isso ajuda a motivar o mercado para que haja cada vez mais DAP. Depois, chegamos à questão do orçamento de carbono, não tanto no que se refere à energia incorporada, mas no que normalmente tem uma relação linear com a energia incorporada para a maioria dos materiais que estudamos. Na Holanda, já existe um orçamento de carbono por m2 para os edifícios novos, tal como temos para o desempenho energético em termos de kWh por m2, e que vai reduzindo todos os anos. Noutros países, esta área já está implementada para os edifícios públicos. O Estado dá o exemplo e, na Alemanha e na Suíça, é obrigatório fazer essa quantificação. Em Portugal, já temos guias desenvolvidos pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que podem suportar esse trabalho. Esses guias permitem, no âmbito das compras públicas ecológicas, exigir um maior detalhe da pegada ambiental do edifício, lado a lado com o orçamento ao nível do projecto, e que isso seja considerado como um critério de adjudicação. O Estado continua a ter o objectivo de que 60 % das compras públicas tenham critérios ecológicos. Aqui estão incluídos os edifícios públicos e, portanto, já existem condições para que a pegada de carbono ao nível do projecto e da construção possa ser um critério de adjudicação.

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 145 da Edifícios e Energia (Janeiro/Fevereiro 2023).