Aproveitar todos os elementos existentes no edifício antigo para reutilização ou reciclagem de forma a conseguirmos o máximo reaproveitamento dos recursos que já estão disponíveis naquele local é a base do conceito da circularidade nos edifícios, explica-nos José Silvestre, professor associado com agregação na Secção de Construção no Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa.
A circularidade nos edifícios é um tema relativamente novo. Quer explicar-nos de que se trata?
A circularidade nos edifícios traz uma série de desafios e deveria começar a ser considerada assim que se concebe um novo edifício. No centro das cidades é difícil encontrar uma área disponível e vazia para a construção de um novo edifício e, por isso, devemos seguir o que já está normalizado a nível europeu em termos de auditorias pré-demolição. Na lógica da circularidade, devemos aproveitar todos os elementos existentes no edifício antigo para reutilização ou reciclagem de forma a conseguirmos o máximo reaproveitamento dos recursos que já estão disponíveis naquele local. Desenvolvemos uma plataforma on-line (C+D) que dá resposta a alguns destes desafios [1]. Sabemos que estes princípios da circularidade garantem a eficiência dos recursos, ou seja, que é sempre vantajoso reutilizar – ou, pelo menos, reciclar – os recursos que já existem e que já foram extraídos da natureza. Mas não temos a certeza se, em termos ambientais, de energia incorporada ou mesmo de custo, vai ser vantajoso transformar esses resíduos numa nova matéria-prima para um novo edifício.
Falta então calcular aquilo que são esses produtos em termos de energia?
E também o consumo no processamento seguinte até [esses produtos] poderem ser reutilizados no edifício. Na plataforma C+D temos disponível, para os vários resíduos de construção e demolição, os impactos ambientais e os custos associados ao destino corrente (envio para aterro, por exemplo), mas também os impactes e os benefícios ambientais e económicos associados à sua potencial reutilização ou reciclagem, seja na própria obra ou noutra obra. [Esta plataforma] Inclui ainda uma geolocalização dos operadores de gestão de resíduos e uma quantificação dos impactes ambientais e custos associados ao transporte para as várias opções de reciclagem, de reutilização e outras.
Consegue dar-nos um exemplo concreto? Podemos estar a falar de uma porta?
Podemos estar a falar de produtos pré-fabricados, como uma laje alveolar, por exemplo. Na Noruega, esses elementos são registados na tal auditoria pré-demolição, é confirmada a sua resistência residual, e [os elementos] são removidos da obra. Podemos, assim, comparar duas alternativas em termos de custo e impacte ambiental: levar aquele betão para aterro, ou tirar partido desse recurso, desse elemento construtivo, para ser reutilizado noutra obra, tendo só o custo e o impacte ambiental do transporte e da demolição selectiva e cuidada. Dessa forma, poupam-se os recursos minerais e os recursos energéticos da sua transformação, além do custo da compra dos materiais virgens.
Podemos começar a falar num novo comércio de materiais usados?
Sim, [porque] não podemos pensar que vai ser possível reutilizar ou reciclar todos os elementos ou resíduos na própria obra. Por isso, a plataforma C+D também funciona como marketplace. As obras podem ser pequenas e estar espalhadas pelo país, mas queremos registar esses resíduos nessa plataforma. O projectista pode, assim, reservar uma determinada porta ou uma dada quantidade de um resíduo e indicar também quando vai precisar de utilizar esses elementos; e, dessa forma, pode saber exactamente quanto vai poupar face a um material novo e quanto pode reduzir a pegada de carbono da sua obra.
Há ainda um processo de transformação associado?
Depende. Se estivermos a falar de reutilização directa, apenas temos de ter cuidado na demolição selectiva; se estivermos a falar em reciclagem, precisamos de escala. Num projecto recente liderado pela construtora DST em que participámos [2], foi possível executar protótipos de betão e de betão betuminoso com agregados reciclados e uma série de outros subprodutos com propriedades finais comparáveis às dos materiais correntes. Mas há uma série de ganhos de eficiência e de redução de custos que só é possível [alcançar] quando se ganha escala, e, para isso, é preciso ganhar a confiança dos clientes.
“Se estivermos a falar de reutilização directa, apenas temos de ter cuidado na demolição selectiva; se estivermos a falar em reciclagem, precisamos de escala”.
Essa desconfiança poderá ser um obstáculo?
Sim, mas o fabricante tem de começar a ter uma oferta regular desses produtos e a qualidade e a oferta do resíduo incorporado têm de ser constantes. Deve, então, demonstrar ao cliente quanto é que ele pode poupar e quais as vantagens em termos de redução da pegada de carbono e de energia incorporada. Existe ainda outro impulsionador destas práticas: as compras públicas ecológicas, já que nas obras públicas já é obrigatória a incorporação de pelo menos 10 % de materiais reciclados ou que incorporem materiais reciclados. A plataforma tem uma função muito prática para o mercado.
Poderá ser uma boa ajuda para essa disseminação? Os agentes vêem vantagens nessa mudança?
Após o desenvolvimento da plataforma, falta fazer a ligação ao Plano de Prevenção e Gestão de Resíduos para permitir ao responsável por esse plano demonstrar ao dono de obra qual o benefício financeiro de se fazer uma gestão mais optimizada dos resíduos e o valor económico e ambiental existente nos recursos do edifício que vai ser demolido. Quando se deixa ao arbítrio do empreiteiro esse processo de gestão, é mais difícil controlar o destino final e garantir esse potencial de valorização dos resíduos. A economia circular aponta para um potencial económico que pode ser o factor decisivo.
É desejável que esse novo mercado esteja intrincado no projecto de arquitectura ou engenharia. Como se pode facilitar ou incentivar isto?
Desenvolvemos uma outra ferramenta que, dentro de um software BIM, avalia o potencial de circularidade de um edifício existente ou de uma obra de construção nova [3] e os impactes ambientais dos vários elementos do edifício de acordo com o sistema de avaliação Level(s), da União Europeia [4]. Sabemos que ainda são questões voluntárias, mas que podem constituir uma diferenciação positiva, principalmente nos concursos de projectos ao nível internacional.
Do ponto de vista prático, é possível integrar a outra dimensão das compras numa infraestrutura como o BIM?
Estamos a trabalhar nesse aspecto em termos de investigação [5]. O objectivo é termos objectos BIM dos elementos que possam ser retirados de um edifício, incluindo as suas características de resistência residual. Para isso, já desenvolvemos passaportes de circulardade com as características intrínsecas do material ou elemento construtivo naquele momento e com o seu potencial de reutilização. Assim, podemos colocar ao mesmo nível estes materiais e um material novo, com todas as características de desempenho exigidas, com os respetivos objectos BIM, e [que estão] disponíveis no marketplace de forma permanente.
A modularidade pode ser uma ferramenta para a circularidade? É uma tendência ou um caminho?
Pode ser um caminho se assim conseguirmos aumentar o conteúdo reciclado ou o potencial de reutilização. Os passaportes de circularidade também podem ser utilizados em produtos novos e informar também sobre a vida útil estimada e a facilidade de desconstrução. A modularidade traz, assim, uma vantagem sigficativa se encararmos o projecto de um edifício de um modo muito próximo àquele de uma construção tipo lego. Neste caso, será muito mais fácil no fim de vida, ou em qualquer altura da vida útil do edifício, separar os vários componentes e reutilizá-los directamente ou com alterações muito ligeiras, em vez de demolir globalmente e enviar para aterro ou para reciclagem.
“À medida que vamos introduzindo matérias-primas menos comuns nos materiais de construção, incluindo resíduos e nanomateriais, vão surgindo questões ao nível da toxicologia, porque não temos a certeza se vai existir a libertação de substâncias com alguma toxicidade e [se isto vai] criar riscos para quem os manuseia ou para quem vai usar o edifício”.
Todos estes temas são relativamente novos. Houve uma aceleração grande ou são assuntos e um trabalho que já existem há muito tempo?
Em termos académicos e de investigação, são conceitos tratados já há muitos anos. Tem vindo a existir uma sensibilização cada vez maior nos últimos anos, e muitos documentos enquadradores têm sido lançados, embora ainda não existam requisitos obrigatórios. Estes temas vieram enriquecer a forma como olhamos para os edifícios do ponto de vista da sustentabilidade.
Há mais alguma coisa que ainda esteja para vir para além da energia incorporada e da circularidade?
Temos vindo a trabalhar, até com alguns colegas estrangeiros, num tema recente que é a toxicologia. À medida que vamos introduzindo matérias-primas menos comuns nos materiais de construção, incluindo resíduos e nano-materiais, vão surgindo questões a este nível, porque não temos a certeza se vai existir a libertação de substâncias com alguma toxicidade e [se isto vai] criar riscos para quem os manuseia ou para quem vai usar o edifício. Em termos de investigação, é uma avaliação importante sempre que estamos a desenvolver novos materiais em laboratório.
Neste caminho, também se converge no sentido da procura de eficiência energética e térmica?
Há aspectos que estão interligados. No Programa de Apoio a Edifícios Mais Sustentáveis 2023, para a reabilitação térmica, que abriu recentemente uma chamada, é dado um bónus em termos de financiamento sempre que se utilizem materiais de isolamento térmico com conteúdo reciclado. Do lado dos fabricantes, o investimento também já está orientado para estas prioridades.
[1] Projecto C+D: https://cplusd-platform.pt
[2] Projecto CirMat: https://cirmat.pt/pt_PT/
[3] https://www.90segundosdeciencia.pt/episodes/ep-1604-joana-fernandes/
[4] Projecto Circular EcoBIM: https://circularecobim.eu/
[5] PositiveCycle group do CERIS do IST: https://positivecycle.pt/en/