Para José Luís Alexandre, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, a fonte de contaminação do surto de Matosinhos poderá estar nas torres evaporativas. Sem os instrumentos essenciais ao cumprimento da Lei (2018) em funcionamento, “quero acreditar que há entidades responsáveis e que mantiveram os seus planos de actuação e prevenção, devidamente actualizados e operacionais”, afirma.

 

Nesta altura, o surto de Legionella em Matosinhos já soma 79 casos. Estão 37 pessoas internadas e oito já morreram da doença. O que se poderá estar a passar? Quais as fontes previsíveis?

Estamos na presença de mais um surto, do qual ainda não se conhece a origem, pelo menos, oficialmente. Mas há uma desconfiança, e suspeita, de que este surto terá tido a sua origem numa ou mais torres evaporativas. Pegando na segunda parte da questão, eu diria que há vários “candidatos” para serem a fonte do problema. A Legionella existe normalmente na água mas o potencial aumenta nos sistemas de água manipulados pelo homem, na verdade, este último é o potencial responsável pela maior proliferação da bactéria. Segundo a ASHRAE [2] há cinco grandes grupos que podem ser potenciais focos do problema; a) sistemas de água potável; b) torres de refrigeração e condensadores evaporativos; c) sistemas de hidromassagens (SPAS); d) fontes ornamentais e outros sistemas similares; e) geradores de aerossóis, atomizadores, lavadores de ar e humidificadores. De referir que a febre de Pontiac pode ser originada efectivamente pela inalação da bactéria da Legionella proveniente de um destes sistemas, mas também pode aparecer de forma espontânea, embora estes casos representem em média 2 a 5 % dos casos[1].

Um aspecto que é bom referir é que podem existir bactérias da Legionella num destes sistemas mas isso não quer dizer que o risco de infecção seja imediato, para isso têm de coexistir, pelo menos, cinco factores base: a) condições físicas e químicas para que as colónias de Legionella se possam desenvolver em larga escala; b) mecanismos que permitam a formação de aerossóis, tais como torneiras, pinhas de chuveiros, torres de arrefecimento, ou seja os sistema dos sistemas acima referidos; c) inalação de aerossóis que contenham a bactéria; d) capacidade da bactéria desenvolver a doença; e) susceptibilidade do hospedeiro à doença.

Voltando à primeira parte da questão, onde está o responsável? A bactéria não é selectiva, atinge qualquer faixa etária e com mais intensidade pessoas mais debilitadas. Quando o número de casos ainda era relativamente baixo, e face à faixa etária que era atingida (maiores de 70 anos), havia uma probabilidade de que a origem poderia ser nos chuveiros. Para tal, havia alguns elementos que poderiam levar a essa conclusão: 1) os hábitos higiénicos das pessoas atingidas (banhos com intervalos de 4 a 5 dias) e a sua localização geográfica; 2) eventual falha na desinfecção da água de abastecimento público; 3) a dispersão atmosférica não era o forte indício, uma vez que, nos dias que precedeu o aparecimento dos primeiros casos, havia muito nevoeiro na zona.

Há medida que o número de infectados foi aumentando e a idade das pessoas atingidas já se tinha espalhado por um universo maior, então a hipótese inicial começava a ser questionável. Analisados os potencias sistemas que estariam “disponíveis” para a proliferação da bactéria, acabamos por encontrar nas torres de evaporativas o potencial sistema na origem do problema, contudo não é 100 % certo que o seja, mas há uma forte probabilidade.

Se alguém levou a Lei a sério, não sei, mas acredito que algumas entidades terão feito um esforço inicial para cumpri-la, ficando na expectativa da tal “plataforma”. Embora não devessem ter ficado na expectativa (à espera), deveriam ter começado a tomar medidas, mas sabemos com estas coisas funcionam em Portugal, enquanto não existirem coimas pesadas “fica-se na expectativa”.

Existe uma lei criada em 2018 que estabelece o regime de prevenção e controlo da doença que, nomeadamente, aponta para procedimentos mais apertados ao nível da manutenção e operação dos edifícios e dos seus sistemas, redes e equipamentos, mas o portal agregador de registos não está ainda operacional. Será que ninguém levou esta lei a sério?

Infelizmente é verdade, há falhas graves a nível da administração central, ou seja, na Direcção Geral da Saúde (DGS). Infelizmente este organismo tem demonstrado uma inadaptação estonteante para tratar problemas deste tipo. Na altura em que se deu o surto de Legionella em 2018 saiu a Lei nº 52/2018 com orientações especificas para que existisse uma estratégia de prevenção e controlo da doença (Art 11º), cuja responsabilidade caiu na DGS e INSA (Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge) para a elaboração de uma estratégia para o efeito. O Art 15º da Lei responsabiliza a DGS de gerir e tornar operacional uma plataforma digital, onde os equipamentos de risco deveriam ser registados, sem custos, para que existisse a informação detalhada dos mesmos. Se alguém for à página da DGS sobre este assunto encontra a seguinte informação: “… A plataforma de registo mencionada no artigo 15º da Lei nº52/2018, de 20 de agosto ainda não se encontra em funcionamento...”. Face a isto, não há muito a dizer a respeito.

Se alguém levou a Lei a sério, não sei, mas acredito que algumas entidades terão feito um esforço inicial para cumpri-la, ficando na expectativa da tal “plataforma”. Embora não devessem ter ficado na expectativa (à espera), deveriam ter começado a tomar medidas, mas sabemos com estas coisas funcionam em Portugal, enquanto não existirem coimas pesadas “fica-se na expectativa”. Contudo, não podemos correr todas as entidades pela mesma bitóla, felizmente quero acreditar que há entidades responsáveis e que mantiveram os seus planos de actuação e prevenção, devidamente actualizados e operacionais, embora acredite que estarão muitíssimo poucas nestas condições.

Onde estão os maiores riscos tendo em conta que a prevenção e controlo passam pela engenharia?

Suponho que todos sabemos a resposta para a pergunta. De facto, só se trata de um problema que se chama manutenção e operação deste grupo de instalações. Os riscos estão efectivamente na manutenção, uma vez que há um conjunto de procedimentos devidamente comentados e documentados, em diferentes fontes, por exemplo a ASHRAE tem uma norma (Standard 188-2018 [1]) com uma lista de acções obrigatórias. Para ajudar na aplicação da norma, criou um guia técnico (Guideline 12-2020[2]) com indicações e procedimentos de como manter, operar e monitorizar, equipamentos potencias fontes de problemas de contaminação de Legionella.

Olhando para estes documentos, entre outros, o primeiro problema surge na forma pouco profissional que os planos de manutenção e de contingência são elaborados para este tipo de equipamentos, isto é, quando são elaborados. Depois, seguem-se as auditorias detalhas que têm de se efectuar, com alguma regularidade, diria anualmente ou de dois em dois anos, sendo sempre dependente da manutenção. É óbvio que tudo isto tem custos e como não se vê, não aumenta a produtividade, etc., na maioria dos casos não se faz. Claro que estou a generalizar, podendo haver excepções.

Depois, há um problema que ainda é crónico, que se chama monitorização. O que não se compreende com a nova vaga (mania) das IoT, o que me leva a questionar se quem fala nestas coisas da Indústria 4.0 é só para inglês ver, ou se efectivamente serve para fazer alguma coisa de útil. Ou então as entidades que se importam com este assunto são as empresas de telecomunicações, mas que se encontram divorciadas da realidade industrial.

Voltando à monitorização, a ser verdade que o problema se encontra nas torres de arrefecimento é incompreensível que tenha acontecido. Hoje é possível monitorizar de forma simples o Ph da água, os níveis de cloro livre, a temperatura e o índice de turbidez, e tudo em tempo real. Desta forma, consegue-se prever quando as bactérias da Legionella “estão no ponto” para iniciar a contaminação. Para isso, basta um investimento que, em números redondos, pode ser da ordem dos 5 a 10 mil euros, dependendo do tamanho da instalação.

Continuar a maltratar os edifícios é também descurar a saúde pública?

De facto, estamos uma vez mais a falar de um processo de auditoria, manutenção efectiva, que em muitos dos casos está relacionada com os edifícios, pois muitos dos potenciais focos de contaminação encontram-se nos edifícios. Claro que também há na indústria, mas nos edifícios também existe este tipo de problemas. Neste último caso, quando efectivamente acontece, é de menor escala e pode-se dar o caso de não ser identificado como sendo a febre de Pontiac. Claro que quando é industrial o impacto é muito maior.

O facto de as auditorias periódicas não se realizarem com carácter obrigatório, como no passado, em resultados da alteração a Lei em 2013[4], pode ajudar a aumentar o risco do aparecimento deste tipo de problemas. Os resultados da falta de controlo da qualidade do ar interior (QAI), ou seja, a inexistência de auditorias periódicas da QAI, ajuda a contribuir para que os índices de doenças do foro respiratório e alérgico tenham sofrido um aumento significativo nos últimos anos. De facto, a eliminação da obrigatoriedade das auditorias acaba por ser um problema de saúde pública e um consequente problema económico. Uma vez que com este elevado número de doentes, aumenta também o índice de absentismo ao trabalho, tendo como resultado, o óbvio.

 

 

Referências

[1] – Guideline 12-2020 — Managing the Risk of Legionellosis Associated with Building Water Systems – ASHRAE

[2] – Standard 188-2018, Legionellosis: Risk Management for Building Water Systems

[3] – Lei nº 52/2018 de 20 de Agosto

[4] – Decreto-Lei n.º 118/2013 de 20 de Agosto