Hugo Santos Ferreira é presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários – APPII, um sector que reivindica há muito a redução da burocracia e a agilidade dos processos. Para este dirigente, os próximos anos vão ser desafiantes, as perspectivas são boas e o mercado já mostrou resiliência, mas falta o resto.

Como caracteriza o sector imobiliário neste momento? O que temos de novo desde a chegada da pandemia?

O sector imobiliário demonstrou que é provavelmente o sector mais resiliente da nossa economia. Os números que têm sido apontados para o ano de 2021 andam nos 30 mil milhões de euros, o mesmo volume de investimento feito em 2019. Esta é a primeira grande característica. Nós não parámos, o investimento não parou, a construção não parou e os projectos continuaram. Continuámos a ser merecedores da atenção dos investidores imobiliários nacionais e internacionais. Os investidores foram muito importantes porque nada os impediu de continuar a investir e [porque] continuaram a acreditar no nosso país.

Qual a razão que os leva a continuar a apostar e a investir em Portugal?

[A aposta] Acontece porque a maioria das premissas do mercado enquanto destino de investimento continuou cá. A única que não está da mesma maneira é o turismo, que não aguentou a pandemia e foi um sector muito afectado. Mas os outros, com maior ou menor dificuldade, mantiveram-se. Os activos imobiliários em Portugal continuaram a valorizar, mesmo em pandemia, com menos transacções na área do residencial, o que poderia indicar uma grande desaceleração dos preços, mas que apenas foi ligeira. No global dos resultados, em 2020, os activos valorizaram. O segundo ponto que também ajudou foi que a pandemia, apesar de tudo, teve um efeito: gerou mais liquidez a nível internacional porque os bancos centrais europeus e mundiais fizeram injecções de liquidez nas várias economias de forma a evitar riscos de recessão económica. O imobiliário continuou a saber posicionar-se e estas dinâmicas mantiveram-se. Depois, [ajudou] também o facto de Portugal, em alguns momentos, ter sido dos países com maior índice de vacinação – isso foi muito positivo porque nos posicionou como um destino seguro e saudável.

Outro ponto importante foi o facto de não termos parado e de paulatinamente termos conseguido legalizar, digamos assim, tornar possível do ponto de vista legal, as vendas à distância, porque, nas alturas de confinamento, não era possível realizar transacções nem visitar imóveis. As escrituras públicas eram sempre presenciais e, de facto, um dos peditórios que fizemos ao Governo, a que se chamou o Manifesto dos Promotores Imobiliários, lançado em Maio de 2020, foi a grande alavanca do nosso programa Relançar, com o objectivo de permitir dar um passo em frente nesse sentido e permitir que a escritura pública, os actos prediais de registo, etc., pudessem ser feitos por meios digitais e teleconferência. Como jurista, sei que isso, do ponto de vista legal, é muito complicado, mas demos esse passo. Foi muito engraçado ver que em 2020, logo a seguir aos piores momentos nos meses de Abril e Maio, tivemos uma actividade enorme. O facto de nos habituarmos a viver em pandemia fez com que esta transição digital fosse tranquila e muito importante. Uma transformação que normalmente poderia demorar décadas demorou semanas.

Tendencialmente, o investimento estrangeiro é aplicado em que sectores?

O residencial continua a ser a estrela da companhia e o grande foco de investimento em Portugal. O segmento comercial também tem tido grande expressão. Há um sector muito interessante, a que tenho chamado o sector da pandemia e que é a logística. A logística era um sector estático e que, nestes últimos tempos, registou níveis de dinâmica brutais. Foi um dos sectores que mais cresceu pelo conhecido conceito da logística de proximidade.

Com o crescimento das vendas on-line, toda a cadeia de distribuição para o consumidor final teve de se deslocar e de se aproximar desse mesmo consumidor. Nesta área, assistimos a grandes transacções por parte de grandes fundos internacionais. No sector turístico temos tido um abrandamento muito significativo, e nos escritórios houve um momento de stand-by, até porque a pandemia trouxe um tempo de reflexão sobre a ocupação e configuração dos espaços. Há uma grande reflexão que se está a fazer nesse sentido e também um pouco nos chamados mercados alternativos, em que os espaços são partilhados para trabalhar ou para viver.

É expectável que a habitação continue a ser o grande filão no investimento para os próximos anos?

Julgo que sim. O ano de 2022 vai ser um bom ano; as perspectivas são muito boas. Vai ser um ano desafiante e vamos ter de continuar a lutar com o aumento do custo da matéria-prima, que é um problema de geopolítica internacional com grandes repercussões na habitação para as classes sociais mais baixas. Vamos ter de continuar a lutar contra o aumento dos valores da construção e da falta de mão-de-obra, [situação] que penso que se vai agudizar com a chegada dos [fundos do] PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] nacional e estrangeiros porque, na última década, não tivemos investimento público. Todo o investimento realizado em Portugal foi investimento privado sem um cêntimo de investimento público. E, portanto, a mão-de-obra e a capacidade instalada estavam disponíveis. Agora, se ela [mão-de-obra] já escasseia, se é cara e ainda vamos ter de a dividir com o investimento público e as obras públicas que estão para chegar, estamos a ver o que vai acontecer.

Pior ainda é que, para além do PRR nacional, temos também o PRR francês, espanhol, alemão… Qualquer trabalhador ganhará o ordenado mínimo por cá, mas em França consegue ganhar três mil euros. Estamos a ver o que vai acontecer aos que ainda cá estão. Não temos capacidade de segurar ou atrair as pessoas. Teria de ser feito um trabalho muito grande de dignificação e tornar o sector da construção mais atractivo. Vai ser um ano desafiante nesse sentido, tanto ao nível da escassez de mão-de-obra, das matérias-primas e do aumento dos custos da construção na sua globalidade. E, quando falamos de capacidade instalada, falamos desde os trabalhadores mais qualificados, aos menos qualificados.

O que vejo é que a grande tendência ou dinâmica na promoção imobiliária está em tentar fazer construção mais acessível, que é onde está a grande procura; e a procura chama-se classe média portuguesa que não tem a sua habitação. Essa é a oportunidade. Mas há dificuldades que existem; cresce ainda o tempo que demoram os licenciamentos, o que torna muito difícil fazer habitação a preços mais baixos. Todos estão a tentar fugir aos atrasos dos licenciamentos, porque as pessoas estão saturadas e todos sabemos que cada ano de atraso de licenciamento são X euros a mais no preço do m².

“No ranking de competitividade internacional, que sai todos os anos, existem dois pontos onde Portugal é sempre identificado como o pior: a burocracia e os impostos. A corrupção só existe quando há burocracia. Quando não há burocracia, não há corrupção.”

Continuamos a ser um dos países mais burocráticos da Europa. Esse problema ainda se mantém?

Mantém-se, claro. No ranking de competitividade internacional, que sai todos os anos, existem dois pontos onde Portugal é sempre identificado como o pior: a burocracia e os impostos. E continua a ser assim embora se vá sempre melhorando alguma coisa.

E qual a razão para não se desembrulharem todas estas dificuldades?

O processo de licenciamento é absolutamente kafkiano; é feito para não funcionar. A corrupção só existe quando há burocracia. Quando não há burocracia, não há corrupção. Temos discutido muito este assunto e sentimos que há vontade política muitas vezes até das cúpulas, sobretudo nos últimos dois anos. É o caso da câmara municipal de Lisboa, que é um caso muito grave, mas onde existe vontade política em mudar as coisas; sucede que, depois, essa vontade não é acompanhada pela estrutura por ali abaixo. Até podemos ter governantes muito empenhados, mas não chega. Nunca se conseguiu resolver o problema do licenciamento e isso só poderá acontecer quando a vontade política for muito grande e não apenas ao nível autárquico. Tem de haver vontade política desde o Parlamento, ao Governo, à Associação Nacional dos Municípios, acabando nas autarquias. Enquanto não houver uma task force com carácter nacional para resolver este problema, [este] continuar a existir, mesmo que se consiga afinar umas coisinhas aqui e outras ali. O problema é sistémico. Todo o sistema está feito para não funcionar e eu falo em vontade nacional porque esta questão tem de ser vista não de uma forma corporativa, não como uma questão autárquica, mas como um desígnio nacional, porque não interessa só aos promotores, aos arquitectos ou aos autarcas. Interessa ao país e cada ano de atraso num licenciamento é menos uma casa que vai para o mercado e menos uma casa que os portugueses podem comprar. Quanto mais escassez, mais o preço sobe. Temos um estudo que comprova que, por cada ano de atraso num licenciamento, são mais 500 euros/m² no preço das casas. [N]Uma casa que poderia chegar ao mercado a 2 500 euros/m², por cada ano [de atraso], o preço dispara. E, muitas vezes, os projectos ficam nas câmaras quatro ou cinco anos, o que inviabiliza completamente o investimento. É por esta razão que é um desígnio nacional.

E que propostas têm sido apresentadas pela APPII? Têm medidas concretas?

A primeira medida que sugerimos é a criação de uma task force a nível nacional, começando no Governo e acabando nas autarquias, passando pela Associação Nacional de Municípios, pelas CCDR [Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional] e todas as entidades que giram à volta das autarquias.

O segundo trabalho a fazer tem a ver com criar as condições para que as cidades e os privados trabalhem em conjunto. Tem havido uma guerra constante e temos insistido muito nesse ponto. Só a trabalhar em conjunto é que é possível criar soluções concretas. No caso de Lisboa, isso aconteceu. Temos reuniões semanais com a autarquia para encontrar a resolução para alguns problemas. Temos um caderno de encargos que é conhecido e que é discutido com as câmaras municipais, nomeadamente Lisboa ou Porto, e no qual um dos objectivos é melhorar a comunicação dos técnicos. As câmaras não podem estar fechadas em si. Os funcionários ou os técnicos devem poder estar contactáveis em tempo de teletrabalho, mas, como durante a pandemia não tinham telemóveis ou computadores, nada acontecia. Estamos no século XXI e não sabemos onde é que as pessoas andaram nestes dois últimos anos. É fundamental melhorar a comunicação. Os técnicos não podem viver numa cúpula em que são completamente incontactáveis. Tem de haver comunicação com os munícipes porque as pessoas precisam de interagir com a vida da cidade e de ter conhecimento sobre os seus projectos. É preciso criar plataformas on-line de contacto com os técnicos e a figura do gestor único do processo. O batalhão de pessoas com quem tem de se falar para um projecto urbanístico numa câmara municipal é uma coisa infindável, rondará as centenas de pessoas. Quando estamos a lidar com qualquer empresa, enquanto clientes, temos um ponto de contacto e um gestor de cliente ou de processo.

Porque é que as câmaras também não têm apenas uma pessoa que faça a ligação? A nosso pedido, a câmara municipal de Lisboa já o fez no anterior Executivo e acabámos por dividir este tema em três fases: arquitectura, especialidades e execução. Precisamos de melhorar a comunicação das câmaras municipais com as entidades terceiras como as CCDR, DGPC – Direcção-Geral do Património Cultural, Autoridade Tributária, Águas, Esgotos, Bombeiros… O tempo que se perde para recolher o selo e a aprovação destas entidades são meses e meses. Envolvendo várias entidades neste caso, [isto] exige, eventualmente, termos uma entidade superior sob a tutela ministerial.

Outro ponto, e que já chegou a funcionar, é a instalação de uma unidade da DGPC na câmara municipal de Lisboa, onde está a maioria dos projectos. Será que não é possível isso voltar a acontecer? No fundo, tínhamos uma unidade especial da DGPC dentro da câmara. Só o facto de o papel não ter de ir dos Paços do Concelho para a Ajuda já era um ganho substancial. São estes pequenos pormenores que não resolvem o caos, mas melhoram qualquer coisa. As vistorias durante o período da pandemia não aconteceram e ficaram suspensas. Mas porque é que não foram dispensadas com todos os mecanismos digitais que temos hoje? Podíamos ter resolvido através de termos de responsabilidades dos arquitectos ou colocando entidades terceiras a gerir essas vistorias. Para se obterem benefícios fiscais ao nível do IMT ou do IMI são precisas vistorias finais, e, com esta situação, os promotores imobiliários ficaram prejudicados durante estes dois últimos anos.

E mesmo assim o mercado cresceu…

E é por isso que somos resilientes. De facto, somos uns tipos “tramados” [risos].

Existem problemas estruturais quando falamos em construção. A pobreza energética é a face mais visível desta questão. Há alguma solução?

Esse é um problema muito grande. Neste momento, estamos no caminho do combate à pobreza energética dos edifícios e a tentar melhorar o desempenho energético. Todo o nosso ecossistema legislativo, fazendo nós parte da UE, nos orienta nesse objectivo. Temos o Pacto Ecológico Europeu, que inclui muitos outros programas, embora eu não veja que esteja a ser feita alguma coisa para que isso [esse objectivo] aconteça. Quando me dizem que, até 2030, todos os edifícios novos têm de ser nZEB, estamos todos de acordo, mas 2030 é já amanhã. Os projectos sobre os quais estamos a decidir agora vão estar construídos em 2030 e eu pergunto se alguém está a pensar nisto. Quando vejo uma Directiva Europeia para os Edifícios ser transposta a dizer que, até 2030, passa a ser obrigatório ter soluções fotovoltaicas nos edifícios, fico preocupado. Porque se quisermos colocar uma solução fotovoltaica numa cobertura em Lisboa, a câmara não vai deixar. Vai dizer que é proibido. Estará alguém a fazer alguma coisa para resolver este problema?

Está a falar dos bairros históricos?

Sim, que é onde se está a construir em Lisboa. Se o investimento está a ir para aí, alguém tem de fazer alguma coisa porque, se não, temos uma directiva europeia num sentido e um regulamento camarário noutro totalmente diferente. Não há opção senão seguir o regulamento municipal em detrimento do ambiente. Mas posso dar mais exemplos: a directiva europeia diz que, até 2030, vai ter de haver sistemas de carregamento eléctrico dentro dos edifícios. Estamos todos de acordo. Eu próprio inaugurei há uns meses o primeiro carregador eléctrico da GALP num edifício. A EDP Comercial está a tentar fazer exactamente a mesma coisa. Mas agora tente colocar um carregador eléctrico em todos os parqueamentos e depois veja o que a câmara diz. Não vai deixar. A mim, não me preocupam os edifícios de classes altas porque esses são altamente eficientes do ponto de vista energético; o que me preocupa é que temos um problema de habitação em Portugal. Não há habitação para as pessoas e nós sabemos porquê. Os terrenos estão caros, a construção está cara, não há matéria-prima, os licenciamentos demoram, etc. E vamos passar a ter directivas que ainda nos vão colocar mais requisitos. Há uma série de normativas europeias que nos apontam para um melhor ambiente, para um melhor desempenho energético… E, depois há outra que nos diz que temos de ter mais habitação e as coisas não cruzam umas com as outras.

“Temos um estudo que comprova que, por cada ano de atraso num licenciamento, são mais 500 euros/m2 no preço das casas. [N]Uma casa que poderia chegar ao mercado a 2 500 euros/m2, por cada ano [de atraso], o preço dispara.”

O poder local e o poder central estão completamente separados?

Estão separados e chegámos a alertar o comissariado europeu para estas matérias. Nós estamos todos de acordo com as directivas, mas, na prática, nada vai acontecer. Vamos chegar a 2030, perceber que nada aconteceu e prolongar as metas para 2050. Sucede que não é isso que queremos; nós queremos que sejam tomadas medidas. Uma das medidas que temos proposto e que ajudaria bastante seria viabilizar e dinamizar um mercado que já existe por toda a Europa, o de Green Bonds – o mercado obrigacionista verde. Trata-se de pegar nos fundos do PRR que existem, nomeadamente as linhas de financiamento bonificado, e alocá-los a um mercado obrigacionista verde para a habitação usando o Banco de Fomento, que vai ser o Banco do PRR. Por esta via poderiam criar-se linhas de financiamento bonificado, públicas e verdes para a habitação acessível e resolviam-se os problemas todos de uma única vez.

Também há a possibilidade de dinamizar, do ponto de vista legislativo e regulamentar, um mercado obrigacionista privado. E aí estaríamos também a dinamizar o nosso mercado de capitais. Nenhum país é competitivo do ponto de vista internacional com um mercado de capitais deficitário, e o nosso é deficitário. Basta olhar para o PSI20. Aí estaríamos a convidar players internacionais e grandes casas de investimento de dívida para virem a Portugal e promoverem mais habitação, mais edifícios verdes, e, assim, [estamos] a melhorar o nosso mercado de capitais. Políticas públicas há muitas, elas não estão é interligadas.

Do lado do mercado da construção e sem contar com os problemas que já identificámos, estamos bem?

A nossa construção é altamente conceituada e reputada na Europa. Veja-se que muitas empresas suecas e as nórdicas, no geral, vêm muitas vezes a Portugal contratar as nossas empresas. E, se falarmos em obras de infraestruturas como pontes, etc., as nossas empresas são das melhores da Europa.

E em relação aos edifícios?

Na habitação mais cara estamos bem. O problema está no resto e nas dificuldades que temos. Ao preço a que a construção está, torna-se cada vez mais difícil manter a qualidade e esse é o grande desafio que nós temos.

A reabilitação energética é uma utopia?

Não. Não é por acaso que a APPII celebrou recentemente um protocolo com vista à melhoria do desempenho energético dos edifícios e que visa criar um roteiro verde do imobiliário. Queremos criar todas as condições ao nível da formação, da consciencialização, das metodologias e dos procedimentos que acabam na emissão obrigacionista verde. Este roteiro verde, criado em conjunto com a ADENE, tem esse objectivo e, portanto, não é uma utopia, é uma realidade. Estas questões da sustentabilidade são reais, mas temos grandes desafios nessa matéria! Precisamos que as políticas públicas se encontrem umas com as outras.

Que outros desafios prioritários identifica?

De um ponto de vista macro e não corporativo, os principais desafios passam por termos mais habitação, menos burocracia e um imobiliário mais verde.