António Tadeu: “À escala do laboratório, eu posso fazer tudo; à escala da indústria, não”

António Tadeu: “À escala do laboratório, eu posso fazer tudo; à escala da indústria, não”

António Tadeu é presidente da direcção do ITeCons – Instituto de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico para a Construção, Energia, Ambiente e Sustentabilidade, uma referência em termos de investigação e conhecimento. “Temos vindo a evoluir muito em função daquilo que são as exigências do mercado que se traduzem nos desafios das próprias empresas”, admite, apontando o instituto de Coimbra como uma “interface imprescindível” para entendermos as ambições do mercado e os desafios da tecnologia. 

O ITeCons, pela sua actividade, tem uma relação directa com o mercado e com a capacidade tecnológica das empresas.   

Em tudo o que fazemos, a indústria e a sociedade estão sempre envolvidas. Ou seja, não desenvolvemos trabalho só por desenvolver ou porque é interessante do ponto de vista científico. Trabalhamos nas áreas da construção, da energia, do ambiente e da sustentabilidade, envolvendo a prestação de diferentes serviços, tais como a consultoria, os ensaios laboratoriais, a formação e a marcação CE. Temos, ainda, uma outra área de prestação de serviços, completamente diferente, que integra o desenvolvimento de trabalhos de investigação aplicada com a indústria. Temos vindo a evoluir muito em função daquilo que são as exigências do mercado que se traduzem nos desafios das próprias empresas.  

Quando falamos em sustentabilidade, parece que as empresas avançam e a regulamentação não acompanha. Temos empresas que estão já a fazer coisas muito mais ambiciosas…   

Existe esse desfasamento e vai existir sempre. Algumas empresas estão, na realidade, muito evoluídas, mas outras não tanto. Algumas tentam responder aos grandes desafios actuais, desenvolvendo novos produtos/equipamentos e novas soluções construtivas. São exemplos destes grandes desafios a existência cada vez mais frequente de fenómenos climáticos extremos, a alteração da morfologia dos próprios solos, que se foi alterando com a erosão e com os incêndios, o consumo energético dos edifícios durante e após a sua edificação, a produção de muitos resíduos, a emissão de gases com efeito de estufa, etc. As empresas têm vindo a desenvolver materiais/equipamentos e soluções construtivas que têm de ser estudadas e integradas dentro de todo o contexto urbano, porque os edifícios não podem ser vistos de forma isolada.  

Refere-se ao ciclo orgânico à volta dos edifícios? 

Exactamente. Para além dos edifícios, é preciso olhar para as infraestruturas, nomeadamente para os sistemas de drenagem, de águas pluviais e residuais. Queremos ter edifícios e cidades mais sustentáveis e, neste momento, temos muitas empresas a olhar e a enfrentar estes desafios.  

Quais devem ser as preocupações?  

Não só devemos procurar edifícios e cidades mais sustentáveis, como [também] comunidades mais resilientes às alterações climáticas. Temos inundações em todo o lado. Temos de proceder à descarbonização do sector de construção. Outro desafio muito importante e que envolve igualmente toda a cadeia produtiva consiste na digitalização da construção. A requalificação do ambiente construído é fundamental e o envelhecimento da população deveria ser uma preocupação, de forma a criarmos condições para promover aquilo que permita um envelhecimento activo e saudável das pessoas. Estes são os grandes desafios que estão no centro das preocupações das empresas. Temos vários projectos que se enquadram nestas áreas.  

E no que se refere, em particular, aos edifícios?  

Se estamos a pensar em construir edifícios e cidades mais sustentáveis, estamos a falar em projectar para obter um bom desempenho em termos de sustentabilidade olhando para as várias dimensões do problema. Estamos a falar em desenvolver materiais e soluções com baixo impacto em termos ambientais ao longo do ciclo de vida do edifício, promover a circularidade dos materiais, optimizar a eficiência energética, promover a eficiência hídrica e valorizar os activos ambientais. Em relação às alterações climáticas, é preciso dotar os edifícios de resiliência e minimizar a sua dependência energética e hídrica. É fundamental promover a adopção de soluções passivas nos edifícios e, aqui, podemos falar de coberturas verdes, fachadas verdes, sistemas de ventilação natural ou sombreamentos. Temos de promover a utilização de soluções baseadas em materiais naturais e, depois, promover condições para mitigar o fenómeno das ilhas de calor dentro das cidades e promover a biodiversidade. As fachadas verdes, por exemplo, promovem os atrasos de picos de cheias e um comportamento mais eficiente em termos energéticos do próprio edifício. Ainda não é obrigatório integrar coberturas verdes nos nossos edifícios. Alguns países da Europa já têm esta solução como mandatória.

“Para além dos edifícios, é preciso olhar para as infraestruturas, nomeadamente para os sistemas de drenagem, de águas pluviais e residuais. Queremos ter edifícios e cidades mais sustentáveis e, neste momento, temos muitas empresas a olhar e a enfrentar estes desafios.”

A digitalização do projecto é cada vez mais importante?  

A digitalização da construção acaba por ser cada vez mais importante e, se formos ver, não se trata apenas daquilo a que se chama a indústria 4.0, que consiste em promover a digitalização de operações, a capacidade de utilizar sensores e de promover o controlo inteligente de operações e decisões. É também importante implementar sistemas de cibersegurança. Tudo isto é muito bonito – podemos ter milhares de sensores inteligentes, de gestão e controlo eficientes -, mas não podemos descurar problemas ao nível da segurança. Estamos a falar de sensores inteligentes à escala do edifício, mas também à escala urbana. Temos de ter a capacidade de fazer a integração e, por isso, estou convencido de que a digitalização na construção acaba por ser algo que é inevitável e que possivelmente as empresas mais pequenas terão mais dificuldade de fazer. 

Voltando à sustentabilidade, continuamos um pouco confusos quanto àquilo que esta significa realmente? 

É tudo um bocadinho confuso, de facto. A forma como olho para esta equação pode ser diferente da do meu colega, mas os objectivos são iguais. 

Quer desenvolver um pouco o tema da circularidade dos materiais, dos resíduos? 

No meu entender, é muito importante valorizar aquilo que, neste momento, é considerado um resíduo. 

Tem que ver com o ciclo de vida dos materiais?  

Tem e era muito importante que quando eu fabricasse qualquer material soubesse, logo à partida, como é que, no final, vou ter capacidade de o valorizar, por exemplo. 

Mas isso está a ser feito de alguma maneira com selos de certificação voluntários, como o LEED.  

Mas não é só isso. Pensemos no exemplo de um sistema de climatização a funcionar. No final de vida, o equipamento tem de ser desmantelado e, nessa altura, devíamos ter a capacidade de saber como valorizar cada um dos componentes. 

Falou nos produtos naturais que deveriam ser privilegiados…  

Temos vindo a desenvolver um conjunto de soluções naturais, como é o caso da palha, da cortiça ou da casca de arroz. E estamos a incorporar esses materiais em produtos como o betão, por exemplo, e a produzir barreiras acústicas, placas com isolamento térmico e acústico.

Em que matérias estão a trabalhar na fase de desconstrução/demolição dos edifícios?     

Há uma série de problemas que resultam dos resíduos da construção e da demolição dos edifícios. Estamos a desenvolver projectos com um conjunto de instituições de ensino e investigação, mas também com empresas que pretendem produzir betões e argamassas. Quando resolvemos desenvolver estes novos produtos no ITeCons, queremos que a indústria participe, porque não podemos estar a criar apenas um produto à escala do laboratório. O produto tem de ter a capacidade de se posicionar e, de alguma forma, ser um sucesso. À escala do laboratório, eu posso fazer tudo; à escala da indústria, não posso fazer tudo e, por isso, tenho de ter condições na indústria para poder fabricar exactamente esse mesmo produto em condições industriais, em ambientes industriais. [Na indústria, há] Uma realidade que acaba por criar um maior número de desafios e variáveis. Por exemplo, no caso da casca de arroz, quando é incorporada no betão ou em argamassas, o que acontece é que o processo de mistura que eu faço dentro do laboratório é muito diferente daquele que se faz, depois, na produção industrial para evitar problemas como o da segregação de materiais que não são tão visíveis à escala do laboratório. 

Voltando à gestão de resíduos nos materiais, que tipo de caminho é que precisamos de percorrer?  

Existe uma questão muito relevante que é pensarmos em quem é o destinatário de tudo isto. E o principal destinatário acaba por ser a sociedade em geral. É a própria sociedade que terá de dizer: “eu quero isto, quero comprar isto e, até nalguns casos, não me importo de pagar mais por isto.” Não conseguimos chegar directamente às pessoas e tem de haver a preocupação do nosso lado em fazê-lo. Já fizemos algumas exposições e outras acções de sensibilização para dar a conhecer o que são os novos materiais, porque só prescrever materiais não chega. Quando eu digo que estou a valorizar resíduos ou que estou a incorporar aquilo que, neste momento, são resíduos em materiais, [noto,] muitas vezes, [que] a palavra resíduo tem uma conotação negativa. Depois, é importante ter a capacidade de chegar aos prescritores, aos próprios projectistas. Temos de conseguir demonstrar que os materiais têm um bom desempenho, uma boa durabilidade, etc. Há muito trabalho de sensibilização, que é fundamental. 

Se tivesse de resumir as vantagens da incorporação dos resíduos nos materiais, o que é que diria? 

Aquilo que queremos é arranjar maneira de diminuir a quantidade de material que é depositado no fim de vida. Temos de tirar partido das próprias propriedades dos materiais para valorizar outros materiais e para produzir novos, muitas vezes, com melhor desempenho quando comparados com aqueles que existem no mercado. E estes factos são muito importantes e explicam as vantagens da incorporação dos resíduos nos materiais. Estamos envolvidos num projecto que visa valorizar madeira em fim de uso que foi tratada com produtos químicos que, neste momento, são considerados perigosos para os humanos. Acontece que colocámos, no passado, essa madeira em diferentes infraestruturas, em diferentes edifícios. Neste caso, estamos a falar em betão e em dar uma nova vida a matérias que não teriam hipótese de serem valorizadas. O objectivo é a preservar recursos naturais que devemos proteger e, com isso, promover uma economia que valorize os resíduos e que promova a qualidade ambiental.  

Aquilo que queremos é arranjar maneira de diminuir a quantidade de material que é depositado no fim de vida. Temos de tirar partido das próprias propriedades dos materiais para valorizar outros materiais e para produzir novos, muitas vezes, com melhor desempenho quando comparados com aqueles que existem no mercado.

Esse tema leva-nos para a incorporação de energia nos materiais. Estamos ainda muito atrasados?  

Tenho a ideia de que estamos atrasados, sim. 

Não há nada na regulamentação europeia que vá nesse sentido, a não ser a abordagem do tema nesta revisão da Directiva Europeia para o Desempenho Energético dos Edifícios (EPBD). Caminhamos rumo à poupança e ao desempenho energético e, depois, somos capazes de construir edifícios com materiais e com soluções construtivas altamente carregadas de emissões de gases com efeito de estufa. 

Neste momento, aquilo que me parece é que há muito poucas empresas a pensar no assunto. Se conseguíssemos valorizar aquilo que são os materiais naturais, já era espectacular. Um dos desafios que temos na área dos edifícios e das nossas habitações é a capacidade de armazenar a energia. Podemos ter soluções fotovoltaicas altamente eficientes, mas, depois, não conseguimos armazenar a energia. O mesmo acontece com as soluções eólicas e por aí fora. Há muitos outros materiais que representam uma quantidade enorme de energia no seu fabrico e transporte.

Sustentabilidade é também produzir localmente e encontrar soluções na proximidade. Esta é uma preocupação? 

Sim, é uma preocupação, sobretudo quando falamos de grandes infraestruturas. 

E de grandes edifícios?  

Referia-me a grandes obras, como uma autoestrada, por exemplo. Nesses casos, a proximidade é tida em conta. Existem quantidades enormes de movimento de terras (escavação/aterro). Continuamos, por exemplo, a trazer madeira de fora do país, porque ainda usamos muitas madeiras exóticas que vêm de longe. Tenho a ideia de que, dentro de algum tempo, quanto mais elevado for o preço dos transportes, [este tema] será uma preocupação ainda maior.

Como podemos calcular a energia incorporada num edifício? Como é que isso vai funcionar no futuro? 

Aquilo de que estamos a falar é da quantidade de energia que, à partida, incorporamos no fabrico do próprio material.  

Essas e as restantes contas, para além das da produção, como as do transporte, da aplicação, da destruição do material no seu fim de vida, etc., não deveriam entrar no balanço energético dos edifícios?  

É inevitável. Mais tarde ou mais cedo, vão entrar; a pergunta está em como é que chegamos lá. Quando olhamos para a eficiência energética do edifício, olhamos para aquilo que é o comportamento dos materiais e aquilo que são as necessidades de aquecimento e de arrefecimento.  

Isso não será curto, se pensarmos numa dimensão mais alargada da sustentabilidade?   

É curto, mas eu tenho a ideia de que já não estamos a falar só em eficiência energética de uma forma tradicional. Quando falamos em eficiência energética, já estamos a olhar para aquilo que é o edifício e para as vantagens que os materiais trazem para o desempenho térmico e energético. Já realizamos análises do ciclo de vida com essas preocupações. 

Não chegou a altura de pensarmos mais na suficiência energética e não tanto na eficiência energética? 

Já todos sabemos o que fazer quanto à suficiência energética. Trata-se de olhar para o edifício e para os materiais, para a envolvente dos edifícios, para as suas características num determinado local. Precisamos de olhar para aquilo que é a quantidade de energia. E existem muitas empresas que, neste momento, tentam fabricar produtos com menor incorporação de energia. 

A indústria da construção? 

A indústria dos materiais. A indústria do cimento tem uma grande preocupação em produzir aquilo que são os eco-cimentos e por aí fora. Existe uma metodologia que é aplicada e que quantifica parte destes problemas, que é a análise do ciclo de vida dos materiais e do edifício, mas não mais do que isso. 

“Quando falamos em eficiência energética, já estamos a olhar para aquilo que é o edifício e para as vantagens que os materiais trazem para o desempenho térmico e energético. Já realizamos análises do ciclo de vida com essas preocupações.”

Como é que os prescritores podem ter acesso ao conhecimento que está a ser desenvolvido?  

Estou convencido de que a solução passa por sistemas de ‘etiquetagem’, um selo, sistemas de certificação. 

Isso aplica-se do ponto de vista da produção, porque, depois, temos todo o circuito do produto. 

Certo, é verdade, mas o processo é muito complexo.  

Temos cálculos, por exemplo, para as demolições?  

Não. Hoje ainda não sabemos o impacto de uma demolição em termos energéticos. Em contrapartida, sabemos que o preço dos transportes não terá uma expressão muito forte no futuro. Valorizar aquilo que é local é importante, mas não me parece que essa seja a fórmula, porque quem fabrica em grandes quantidades possivelmente não tem mercado nas redondezas e aquilo que vai fazer é criar condições mais acessíveis para fazer circular os produtos de uma forma mais barata e rápida. Temos casos de empresas que fazem a montagem dos produtos no local onde estes são colocados e esta é uma outra solução [possível]. 

Também há a questão do valor comercial. 

Vamos cair naquilo que é a etiquetagem, e não só dos materiais, para que tudo possa ser valorizado e caracterizado em termos de classes.  

Será esse o motor para que estes processos avancem e passem a ser contemplados na certificação energética dos edifícios? 

Sabemos perfeitamente que nem tudo o que vem nas etiquetas dos próprios materiais é correcto. Não podemos mudar o mundo. Aquilo que queremos é que as empresas produzam e continuem a ganhar e a vender. E, sobretudo, têm de satisfazer aquilo que são os interesses dos próprios clientes e da cidade que os quer comprar. Há sempre a base do princípio do custo-benefício, que vai servir como bússola.  

Sente que as empresas têm capacidade e vontade de continuarem a investir? 

As empresas são muito receptivas a fazer esse percurso. E, repare, é uma questão de sobrevivência, porque as empresas sabem perfeitamente que, se não o fizerem, mais cedo ou mais tarde, vão ser ultrapassadas. Quando fazemos um plano de gestão de resíduos numa obra, já quantificamos aquilo que é o peso das várias quantidades de resíduos a incorporar na obra e o destino de alguns desses resíduos na construção. Existem muitos passos que já foram dados e os processos estão a andar.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 145 da Edifícios e Energia (Janeiro/Fevereiro 2023).

Autor #3

Luís Malheiro

Consultor de Energia; Eng.º...

Autor do artigo

Rita Ascenso

Directora da Edifícios e Energia.

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