Através da Renovation Wave, a Comissão Europeia pretende reabilitar energeticamente todo o parque de edifícios da União Europeia até 2050, ano para o qual foi traçado o objectivo de alcançar a neutralidade carbónica em todo o continente. A EuroACE, organização que junta empresas do sector da eficiência energética, considera a iniciativa comunitária “insuficientemente ambiciosa”, apontando para a necessidade de fazer o ritmo anual de reabilitações de edifícios triplicar – e não duplicar, como sugere a Comissão Europeia. Numa entrevista concedida à Edifícios e Energia, no final de Agosto, a partir da sua residência, o secretário geral da EuroACE, Adrian Joyce, reconheceu que este ritmo “tem de ser aumentado de forma muito significativa”. A pandemia, diz, poderá levar a qualidade do ar interior (QAI) a estar “muito mais à frente nas preocupações”, mas lembra que a QAI “desejada” não será alcançada sem uma aposta simultânea na eficiência energética. Enquadrada na Renovation Wave, pedia um fundo específico para a reabilitação, que não colheu apoios. Reivindica, agora, a criação de um mecanismo de gestão de reabilitações.

De acordo com a EuroACE, a Renovation Wave é “insuficientemente ambiciosa” e precisa de triplicar o actual ritmo de reabilitação, ao invés de duplicá-lo, como propõe a Comissão Europeia. O que é que está em falta no roteiro da Renovation Wave?

De facto, o ritmo da Renovation Wave tem de ser aumentado de forma muito significativa se queremos alcançar um parque edificado descarbonizado em 2050, ainda mais do que as pessoas pensam. Mas coloquemos isso de lado por um instante. A principal falha, na nossa visão, é [a falta de] um sentido de urgência e um sentido de envolvimento ao nível dos Estados-Membros. Para além disso, acho que posso dizer que o próprio sector precisa de aumentar as suas actividades e tornar-se mais inovador nas suas abordagens, de modo a alcançar um nível mais elevado de produtividade no sector da reabilitação. E isso é um grande desafio, porque o sector da construção é um sector tradicional com práticas bastante conservadoras, em grande parte devido aos perigos inerentes à pobreza das normas de construção. Se estás a construir edifícios, estás a responsabilizar-te pela segurança, não apenas estrutural mas também pela segurança contra incêndios e pela qualidade do ambiente interior, pelo que, em consequência. Apontamos os dedos à ambição dos Estados-Membros, mas há outra coisa que é difícil que é a profundidade do conhecimento entre as entidades públicas, que são os reguladores e que preparam planos que podem, depois, receber fundos. Uma das coisas que mais temos reivindicado é o aumento da assistência técnica e da assistência ao desenvolvimento de projectos, não só para os Estados-Membros mas também para as autoridades locais, para as autarquias, para as regiões europeias, porque são estas que estão mais próximas dos projectos e preparam planos, pelo que devem ter mais conhecimento sobre aquilo que é viável, mas precisam de ajuda em todos os aspectos técnicos e, em particular, sobre o acesso aos fundos europeus. A dificuldade, ao nível da UE, é a de existir um número grande de fundos – 36 ou 38 fundos diferentes que podem financiar a renovação de edifícios e isso é altamente complexo para uma administração de um Estado-Membro.

A EuroACE expressou o seu “profundo desapontamento” relativamente à falta de um fundo de reabilitação específico no Next Generation EU – o plano de recuperação de 750 mil milhões de euros apresentado pela CE em resposta à actual crise pandémica. O que é que isto significa?

Reivindicámos fortemente um fundo dedicado à renovação ou uma provisão de fundos específica. Pedimos isto porque sentimos que, se houvesse uma parte do dinheiro com um limite temporal disponível aos Estados-Membros, isso criaria a urgência de que falei. E com a urgência, [os Estados-Membros] seriam provocados a agir. Com a excepção de alguns membros do Parlamento Europeu, tivemos muito pouco apoio para essa ideia e nenhum apoio dentro da Comissão Europeia e basicamente nenhum apoio entre os Estados-Membros. Recentemente, temos falado num mecanismo de gestão de reabilitações. Sabendo que não vamos ter esta provisão, sugerimos que a Comissão Europeia e o Banco Europeu de Investimento (BEI), que serão o Banco Climático da Europa, colaborem juntos e criem uma unidade de pessoas dentro do BEI, depois, irá facilitar a gestão destes programas de reabilitação.

Estamos a tentar ser pragmáticos e realistas, já não estamos a pedir uma provisão de fundos, estamos a pedir um mecanismo – uma equipa de especialistas que pode dar assistência técnica e apoio financeiro ao nível dos Estados-Membros ou a um nível mais local, para aceder a fundos da UE”.

Sabemos que os especialistas e o BEI têm a capacidade e o conhecimento para entender onde é que se pode ir buscar o dinheiro ao nível europeu e como parcelar esse dinheiro para o entregar aos Estados-Membros, a cidades ou até a comunidades que tenham um projecto merecedor de financiamento. Estamos a tentar ser pragmáticos e realistas, já não estamos a pedir uma provisão de fundos, estamos a pedir um mecanismo – uma equipa de especialistas que pode dar assistência técnica e apoio financeiro ao nível dos Estados-Membros ou a um nível mais local, para aceder a fundos da UE. Este mecanismo deve agrupar os fundos europeus, para que, a nível local, as pessoas não enfrentem esta complexidade e vejam apenas o dinheiro a vir desta fonte única, este mecanismo dentro do BEI, gerido conjuntamente pela Comissão e pelo BEI. Esta ideia está a ganhar alguma tracção e estamos a ter algum apoio de alguns oficiais da Comissão e de algumas pessoas dentro do banco de investimento. Tentamos ser pragmáticos, tentamos ser realistas sobre o que pode acontecer, sobre o que seria útil no terreno, e achamos que um mecanismo deste género seria uma óptima medida. Estamos a lutar muito para que seja incluído na Renovation Wave. A Renovation Wave pode definitivamente ser o instrumento, ao nível europeu, que dá o ímpeto para criar tal mecanismo.

Que efeitos pode a pandemia ter na execução da Renovation Wave?

Acho que um dos impactos do covid vai ser o foco na qualidade do ar interior e na melhoria da circulação do ar nos edifícios. Sabemos que já temos os sistemas, mas ainda não estão implementados de forma generalizada. Nunca usámos tanto as nossas casas – a qualidade das casas vai estar muito mais à frente nas preocupações e isso acho que é uma coisa positiva, porque vamos ser capazes de tornar isso possível em habitações e empresas de toda a Europa através da Renovation Wave. Outro dos desafios – e não é relacionado com o covid – vai ser a capacidade no sector. Levanta-se a questão: temos trabalhadores qualificados suficientes para realizar este trabalho? A resposta curta, acho, é não. Enquanto parte da Renovation Wave, esperamos que haja um pilar de treino e formação que olhe para como podemos, simultaneamente, aumentar o número de trabalhadores disponíveis e as suas capacidades dentro do sector daqui para a frente. Estamos convencidos de que em muitos dos sectores que foram negativamente afectados, particularmente o turismo, a hotelaria, há um conjunto de pessoas desempregadas, em crescimento no momento, que poderiam muito rapidamente ser treinadas para muito bons trabalhos no sector da construção. Mas isso teria de ir de mão dada com a mudança de práticas no sector da construção, para se tornar mais industrializado, mais dentro de portas, mais digitalizado, para que haja trabalhos mais limpos, mais atraentes e modernos dentro do sector. As pessoas ainda sentem que o trabalho de construção é estar lá fora, exposto ao tempo, em lugares lamacentos e em más condições. O sector da construção moderno não é assim, mas a mensagem não está a passar. Estes são elementos complexos da teia que têm de ser reunidos para trazer aquele triplicar do ritmo de renovações que consideramos ser necessário na Europa. E com o encorajamento certo, o sector responderia, mas nesta altura não vejo isso a acontecer, a não ser que o documento da Renovation Wave seja verdadeiramente inspirador e que os Membros-Estados respondam à altura. A Directiva para o Desempenho Energético dos Edifícios requer que cada Estado-Membro apresente a sua própria estratégia de longo prazo para a renovação dos edifícios, mas, à data, apenas regiões e 12 Estados-Membros a submeteram. Podem imaginar que pessoas como eu não se sentem motivadas quando Estados-Membros são tão lentos a cumprir com directivas que eles próprios adoptaram e com as quais concordaram.

O actual crescimento da importância da QAI pode fazer com que a eficiência energética fique em segundo plano?

Acho que é possível. Mas não podemos, na minha forma de ver, alcançar o tipo de qualidade do ar interior que é desejada sem também apostarmos na eficiência energética. Claro que esta é a minha convicção pessoal. A realidade é que não me importo verdadeiramente com os argumentos que utilizamos ou os elementos que priorizamos, desde que promovam acção e alimentem a vontade, entre os proprietários de edifícios, de reabilitar. É para isso que estamos todos a trabalhar. Sem renovar os edifícios e sem avançar o mais longe possível na descarbonização do processo de construção, não vamos ser capazes de descarbonizar o parque edificado até 2050. Mas vou sempre advogar, em primeiro lugar, pela eficiência energética, é a minha convicção. Acho que é uma questão pertinente de se levantar, mas acho que a Renovation Wave vai focar-se em vários destes assuntos, tais como a diminuição da procura energética. Vai focar-se na introdução de renováveis no sector da construção, vai focar-se no consumo eficiente de recursos e nas dinâmicas da economia circular. Acho que a Renovation Wave vai ser mais holística que as anteriores directivas para o desempenho energético e diria que é isso que está correcto. Os edifícios são sistemas complexos, temos de tratá-los de forma holística e não podemos fazer isso se estivermos focados apenas num aspecto, seja a qualidade do ar interior, através da ventilação e dos controlos, seja apenas a redução energética, através de isolamento e boas janelas, não – é uma combinação que é necessária e essa abordagem holística é o que a EuroACE promove.

 

Esta entrevista integra o artigo Descarbonizar a Europa através da reabilitação energética dos edifícios, presente na mais recente edição da Edifícios e Energia (nº131).