Especialista em financiamento sustentável, há vários anos que Jorge Rodrigues de Almeida acompanha o mercado da eficiência energética e das empresas de serviços de energia em Portugal. Numa conversa sobre o modelo de negócio do MES Barcelona e a sua possível adaptação à realidade nacional, o managing director da consultora RdA Climate Solutions elencou alguns dos temas que continuam a bloquear o investimento na eficiência energética nos edifícios em Portugal, deixando sugestões sobre como tornar estes projectos mais apetecíveis para o dinheiro privado.
Como avalia um mecanismo como MES Barcelona?
Tem o mérito de ser lançado por um município e de tentar atrair os investidores privados e os cidadãos. Chamamos a este tipo de iniciativas one-stop-shop, em que a ideia é que o município sirva de agente agregador das duas entidades, promovendo, em especial, as comunidades de energia renovável (CER) [e o autoconsumo colectivo], mas também a eficiência energética nos sectores residencial e de pequenos serviços. A diferença está realmente no facto de o município ser o agente agregador, trazendo alguma garantia ao processo.
Em que medida?
O facto de o município entrar com uma parte do financiamento vai baixar o risco do financiador. Numa cidade, estes projectos serão sempre muito pequenos, dispersos, sem escala e com custos de transação muito elevados. A participação do município permite, por um lado, ganhar escala, agregando projectos e, por outro, enquanto co-investidor, o município vai também fazer trabalho de casa para avaliar o projecto, os seus riscos, etc., o que reduz o trabalho do investidor privado. Além de que, tendo a chancela do município, o processo poderá também ser facilitado em termos de licenciamento. Com esta garantia e este envolvimento do município, pode tornar-se mais interessante para o investidor privado.
Que barreiras existem num mecanismo deste tipo?
Do lado municipal, o grande problema está numa questão que não é fácil de resolver: a contratação pública. Do lado privado, tem que ver com a gestão de condomínios e com os processos de aprovação do edificado em propriedade horizontal. Em Portugal, mesmo depois de alguma simplificação nesta matéria para as CER, ultrapassar esta barreira jurídico-legal dos condomínios e conseguir a aprovação [da maioria dos condóminos] não é um processo fácil. Presumo que, nesse ponto, a situação não seja muito diferente em Barcelona. Parece-me que este possa ser o grande desafio deste mecanismo e também o grande desafio à sua replicação cá.
Seria possível um município português assumir um papel semelhante ao de Barcelona?
Não é fácil um município constituir-se como um veículo de investimento puro, por exemplo, ser uma sociedade de capital de risco e ter uma linha de financiamento específica neste tópico. O que vejo alguns municípios a fazer é constituírem-se, de alguma forma, como financiadores, mas a fundo perdido, usando parte do seu orçamento e apostando num sector muito específico como a habitação social ou habitações identificadas com pobreza energética. Temos ajudado alguns municípios em Portugal a pensar estas soluções, que são ligeiramente diferentes do MES Barcelona. Quando tentamos replicar o mecanismo [espanhol], esbarramos no Código dos Contratos Públicos, na dificuldade de o município se constituir como uma entidade financiadora, na parte dos condomínios e, como acontece no caso das CER, nos constrangimentos [a nível] da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). Estes últimos são ultrapassáveis; já os primeiros, pelas consultas que fizemos, não me parecem superáveis. Temos também de reconhecer que, em termos de dimensão e de atractividade de investidores, não temos nenhuma cidade em Portugal como Barcelona. Há Lisboa, Porto, cidades como Sintra ou Cascais, que têm alguma dimensão e já trabalharam bem áreas como a inovação e a sustentabilidade, mas as restantes cidades, por motivos de escala, embora possam ser até muito activas e com programas mais interessantes, não montam um sistema destes porque não conseguem ser atractivas. Cidades como Barcelona ou Madrid têm outra escala, outra atractividade do ponto de vista financeiro e outras capacidades que nós não temos. Não basta pegar na ideia e fazer igual em Lisboa, achando que vai funcionar.
Qual seria o envolvimento possível de um município num mecanismo deste tipo em Portugal?
Poderia fazer exactamente o mesmo modelo, mas não posicionando o município como investidor puro, em que o investimento que faz tem retorno financeiro. Pode entrar, por exemplo, financiando a auditoria, os estudos técnicos ou com uma pequena verba a fundo perdido mediante critérios de elegibilidade, por exemplo, visando pessoas em risco de pobreza ou identificadas em termos sociais como tal. O limite, neste caso, é que estas pessoas normalmente não têm capacidade de dívida para os investidores, logo, há um balanço difícil a fazer. Quanto mais baixa for a parte municipal, mais elevado será o risco para o privado.
Tendo em conta todos esses constrangimentos, seria um modelo interessante para as cidades portuguesas?
Adaptado à nossa realidade, e atendendo às limitações legais que temos, sim. O município entrar [no modelo] através de uma subvenção ou financiando uma parte e, assim, fazer avançar os privados para esse negócio parece-me interessante, tendo em conta até a grande preocupação actual com os preços da energia. As CER, se avançarem, têm a virtude de poderem tentar misturar o público com o privado. Muitas vezes, os municípios têm grandes edifícios com pouco consumo – por exemplo, os pavilhões desportivos – que podem ser usados para produzir energia e, depois, vendê-la a preços mais reduzidos a bairros sociais, por exemplo. Podemos jogar com estas oportunidades e fazer estes balanços.
O que é preciso para que funcionasse?
Uma das coisas principais seria trazer a banca à discussão e ouvi-la. Mesmo um investidor privado tem uma parte de dívida associada ao seu financiamento, e, por isso, é importante ouvir a banca, e saber do que esta precisa para poder avançar ou não. Se o banco não financiar, não vamos conseguir ter músculo para este negócio. É importante ouvir todas estas partes no desenho destes mecanismos. Problemas jurídicos e legais nós temos e Espanha também os terá; agora, é preciso sentar as pessoas à mesa e tentar desenhar um modelo, adaptar, ver o que funciona, excluir o que não funciona e, depois, tentar executar.
No MES Barcelona, fala-se também de medidas passivas de melhoria da eficiência energética, mas o foco está na produção local de energia a partir de renováveis. É o que faz sentido nestes modelos?
As medidas de eficiência energética têm um período de retorno muito grande, o que não é atractivo para o processo. Para os investidores, as renováveis são sempre um negócio mais fácil, pois, por exemplo, conseguimos contabilizar a produção e todos entendem as mais-valias porque temos lá um contador. No entanto, na eficiência energética, não consigo medir a poupança porque esta não é directa; pode vir de muitos lados. Além disso, quando falamos de renováveis, há uma única tecnologia; na eficiência energética, temos centenas de tecnologias e os cálculos são sempre mais difíceis de aferir, o que cria apreensão nos investidores. Nesta situação, a participação do município poderia dar uma garantia adicional.
No caso português, poderia pensar-se num mecanismo destes à escala nacional, acedendo a outro tipo de fundos, por exemplo, comunitários?
Defendo que as renováveis não devem ser financiadas por fundos estruturais, pois têm retorno relativamente rápido; mas a eficiência energética, sim. Uma possibilidade lógica para mim é o Fundo Ambiental ou o Portugal 2030 colocar-se na parte das garantias, disponibilizando uma garantia para cobrir parcialmente o risco de crédito de uma carteira de novos financiamentos assegurando o pagamento se o cidadão não tiver essa capacidade. Trata-se de um suporte de garantia; é uma questão mais técnica, mais financeira, que promove não tanto o capital, mas uma garantia financeira parcial aos intermediários financeiros. Desta forma, alavancamos o investimento privado e podemos, com este modelo, alavancar a parte menos lucrativa, que é a da eficiência energética, incluindo-a, por exemplo, nos requisitos dos programas.
Os regulamentos permitiam fazer isso?
Obrigava a bastantes alterações, porque se estas garantias forem dadas, por exemplo, a uma empresa de serviços energéticos (ESE) e não ao cliente final, quem está a receber o financiamento não é quem o vai aplicar, e, tipicamente, nos fundos estruturais associados à energia, o beneficiário é aquele que aplica a medida e é o dono do activo, etc. Em Espanha, já se faz isso: não se olha para o beneficiário, mas, sim, para o projecto, e o beneficiário pode ser uma ESE, um fundo, o dono do edifício, etc., o que interessa é o projecto. Mas isso é uma alteração de paradigma que não se antevê em Portugal. Aqui, os financiamentos vão todos para o beneficiário final.
“As entidades estão habituadas a financiar os seus projectos com fundos estruturais e, quando esse financiamento não existe, não conseguem montar os modelos para avançar de outras formas.”
Ainda existem muitos entraves às ESE e ao financiamento da eficiência energética?
Sim. Nos fundos estruturais, que financiam muitas medidas, as ESE não são elegíveis como beneficiárias, o que é contraproducente. A Comissão Europeia diz-nos que o dinheiro público deve alavancar o investimento privado, e que 10 % do financiamento necessário para a transição climática devem ser públicos e os restantes 90 % devem advir do privado. O que vemos em Portugal é uma inversão total e, grande parte das vezes, é 90 % público e 10 % privado. Para mudar isso, é preciso dar ferramentas para que as ESE possam actuar e uma dessas ferramentas é que estas empresas possam ser entidades elegíveis no âmbito do financiamento e possam, depois, entregar o equipamento no final do processo, etc. É um dos modelos possíveis. Outro é o que Barcelona está a tentar fazer, mas, para isso, precisávamos de revisão dos quadros legais e esses são processos extremamente morosos que nos fazem perder oportunidades.
E qual é a grande oportunidade neste momento?
É o solar. Estamos num bom momento por causa do custo da energia e o que quer que se faça deve ser feito de uma forma bastante rápida.
Estamos sempre à espera de que sejam os fundos estruturais a pagar tudo?
Infelizmente, do lado público, é verdade. Grande parte do investimento público é financiado por fundos estruturais. É um hábito que não é fácil de desenraizar. As entidades estão habituadas a financiar os seus projectos com fundos estruturais e, quando esse financiamento não existe, não conseguem montar os modelos para avançar de outras formas. Depois, também há um espartilho muito grande no endividamento dos municípios, com limites de dívida, etc., o que faz com que estes não possam ser criativos. Tivemos uma fase em que fomos, aparentemente, muito criativos com as PPP, o que não lhes deu também boa fama…
Isso impede que modelos baseados em PPP possam ser criados?
Há um historial e um conjunto de problemas, mas acho que é exequível. Mas é preciso trazer as pessoas à mesa, discutir e pegar em exemplos que funcionam. Não sei se será já o caso do MES Barcelona, porque, embora tenha sido reconhecido pela ONU, ainda não tem a alavancagem que é expectável.
Como está a confiança das ESE no mercado português? Estão também a optar por projectos de fotovoltaico?
O modelo típico das ESE está também associado ao fotovoltaico, embora não sendo exactamente um contrato de desempenho energético puro, e todas as empresas estão envolvidas [neste negócio], porque, mais uma vez, é um modelo simples e as receitas são bastante atractivas, com retornos de cinco anos e, nalguns casos, até menos. Os projectos de eficiência energética na indústria também são muito apetecíveis, porque é um sector com grandes consumos. No sector residencial ou de pequeno comércio, temos um problema, porque são projectos muito pequenos, com um risco muito alto e pouco interessantes do ponto de vista financeiro. Obviamente, grandes empresas, como as comercializadoras de energia, poderão ter uma visão diferente, porque têm o cliente já no âmbito dos contratos de fornecimento de energia, têm serviços adicionais e conseguem promover outras propostas. Nas ESE de menor dimensão, o modelo não é atractivo. A par disso, no público, infelizmente, o modelo nunca funcionou e, no âmbito do ECO.AP 2030, também não se vêm grandes alterações, logo, não me parece que vá funcionar – à excepção dos projectos de iluminação pública, porque aí o cálculo é também muito simples. Já nos edifícios, é extremamente complexo, com requisitos extremamente complexos.
Não houve avanços nessa matéria nos últimos anos?
Não muitos e a discussão, entre as ESE, é sempre a mesma. Há outros tópicos, há outras questões, mas, quando se fala de contratação pública, [o problema é o mesmo]. O próprio princípio do ECO.AP destaca as ESE de uma forma clara, não há uma interligação. E parece-me também não haver um grande envolvimento dos investidores. Também no caso do ECO.AP, os bancos têm de ser ouvidos, porque são eles que vão financiar as ESE, que, só por si, não têm capital. É importante perceber esta questão dos activos e como é que um investidor institucional, como é um banco, vê este modelo de negócio.
É possível alcançar as metas de energia e clima sem os privados?
Não, nem nada que se pareça, e isso é assumido pela própria Comissão Europeia, cujos programas nos dizem que devemos usar o financiamento público para alavancar o capital privado. Como o vamos fazer? Com PPP, com concessões, etc. É preciso abrir esse mercado, retirar barreiras, criar regulamentação, mas temos de conseguir atrair os investidores, reduzindo a percepção de risco que estes têm. Os modelos de mais sucesso que conheço e que vejo como de futuro são quando as instituições financeiras, como o Banco Europeu de Investimento, oferecem, não o capital, mas as garantias ou, então, a assistência técnica, o que permite depois alavancar investimento privado.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 145 da Edifícios e Energia (Janeiro/Fevereiro 2023).