O caminho para digitalizar os edifícios e torná-los mais inteligentes e conectados ainda é longo, mas compensa, defende Thomas Kiessling, Chief Technology Officer da Siemens Smart Infrastructure. Para o responsável, que apresentou a plataforma Building X numa conferência de jornalistas, explorar este potencial só na parte da operação dos edifícios pode traduzir-se na redução de, pelo menos, 10 % da pegada mundial de carbono ligada ao sector. 

É preciso acelerar a descarbonização e a transformação digital. O que significa realmente o conceito de um edifício inteligente?

Em primeiro lugar, e acima de tudo, significa digitalização. A digitalização liga todos os consumidores de um edifício e os fabricantes – um painel solar ou um sistema de armazenamento ou as microrredes [de energia] do lado do produtor, e do lado dos consumidores, tipicamente, equipamentos de refrigeração, aquecimento, iluminação, talvez uma estação de carregamento e outros dispositivos. Conectar tudo isso, digitalizar tudo e disponibilizá-lo de forma a permitir o controlo, a medição e a melhoria [dos diferentes vectores] – é esse o cerne da questão. É uma espécie de condição prévia, diria eu. A digitalização, por si só, não torna [um edifício] inteligente, mas sem ela não é possível fazê-lo. A inteligência vem, depois, das aplicações que são acrescentadas e que, como disse na minha apresentação do Building X, criam valor na área do desempenho [do edifício], que está relacionado com a forma como faço a gestão do edifício. [É] Muito mais inteligente. Isto é o primeiro ponto. Depois, há a questão da energia ou da sustentabilidade da redução da energia, da redução dos consumos, para tornar o edifício mais eficiente. E, em terceiro lugar, a experiência no edifício, isto é, o conforto. A digitalização é o facilitador, e as aplicações surgem por cima [disso], e isso torna-o mais eficaz, eficiente, confortável.

Existem potenciais benefícios ainda por explorar ou alcançar mesmo nos projectos já mais desenvolvidos? Qual é ambição da Siemens para o futuro?

Sim, 5 % dos edifícios são inteligentes, talvez um pouco menos ou mais, mas é uma minoria. Portanto, logo aí, existe um enorme potencial e nós já indicámos que se conseguirmos concretizá-lo provavelmente somos capazes de retirar 10 %, ou até mais, do total da pegada de carbono em todo o mundo – tudo apenas na operação dos edifícios. Por isso, vale mesmo a pena apostar nisto. Depois, o nosso plano é digitalizar as áreas industriais ou comerciais abandonadas. Não se trata apenas de novos projectos de construção, porque apenas até 1 % de todo o parque edificado é reabilitado por ano. O que está em causa são realmente estes edifícios existentes, que se digitalizados podem trazer poupanças de energia na ordem dos 30 ou 40 %, além das vantagens noutras áreas.

A componente da operação é incontornável para falarmos em zero emissões. Há possibilidade de expandir este tipo de pensamento e de transformação digital para outras partes do ciclo de vida dos edifícios para que se tornem ainda mais sustentáveis?

Sim, é absolutamente possível. Regra geral, 50 % do carbono está incorporado nos materiais e 50 % está relacionado com a operação. Às vezes, é 55/45, mas anda à volta destes valores. Por isso, antes de mais, saudamos e incentivamos na comunidade esta visão abrangente, de ponta-a-ponta, porque ainda não está consolidada. Não existe uma norma ou uma metodologia que eu possa indicar neste âmbito que meça efectivamente e de forma padronizada a pegada de carbono total. Ainda não existe. Existem algumas propostas. Estamos a participar nesse processo, mas precisamos desta ferramenta porque quando se mede torna-se possível gerir e reduzir. Isso é muito importante. E será possível alcançar um edifício completamente zero emissões de carbono em todas as fases? A resposta é sim; é fazível. Existem dezenas de exemplos em todo o mundo – são, sobretudo, showcases para demonstrar que é possível fazê-lo. E como é que isto se faz? Aplicando um princípio de sobredimensionar uma abordagem zero emissões, por exemplo, na fase de operações, sobredimensionarem-se as soluções solares, se houver espaço à volta do edifício, e recorrendo às melhores práticas em termos de eficiência energética, isolamento, materiais utilizados. Já é possível, mas, como disse, são showcases. Isto ainda não é escalável para centenas de milhares de edifícios.

Deve desenvolver-se esse caminho ao mesmo tempo que se promove a digitalização da operação dos edifícios, que também ainda não está disseminada?

Sim, exactamente. Ao mesmo tempo, porque, de cada vez que digitalizamos um edifício, obtemos mais e mais informações também sobre o carbono incorporado no edifício. Se tivermos a representação BIM do edifício, a representação estrutural, e soubermos os materiais utilizados, podemos deduzir da pegada carbónica total do edifício a parte correspondente às fases de projecto e construção. Mas, mais uma vez, não existe uma norma, pelo que é muito difícil fazer isso. Na fase de operação, existem algumas normas que são suficientemente boas. É o caso da certificação LEED, por exemplo, que é utilizada em larga escala para se chegar a uma medição real da pegada de carbono nas operações. Na concepção, isso é mais difícil. Há alguns anos, o sector estava bastante entusiasmado com os gémeos digitais da concepção à operação, ou seja, com desenhar um edifício e construí-lo exactamente como no projecto, com os materiais estipulados, para se conseguirem zero emissões na construção e na operação, resultando em muitos edifícios pré-fabricados à base de madeira – muito comum no Canadá e nalgumas partes da Ásia. Nós, embora não estejamos activos como operadores nessa região, apoiámos essa ideia, estabelecendo parcerias com empresas com essa visão. Mas isto é muito difícil porque o sector da construção é tradicionalmente ineficiente. Há muitos actores e interesses instalados e aqueles que estão a obter grandes margens de lucro com a produção ou com a construção não estão necessariamente interessados em perturbar toda a cadeia de abastecimento. Por isso, penso que há algumas questões sérias de regulamentação e de estrutura de mercado que nos impedem de romper com isto.

Que tipos de edifícios podem beneficiar mais dessa transformação?

Existem mais de uma dezena de tipologias de edifícios. No sector imobiliário comercial, penso que funciona muito bem porque estamos a falar de pessoas a trabalharem em edifícios, onde há muita capacidade de gerir o espaço. Pode experimentar-se com a iluminação, com o arrefecimento e tudo o resto, pelo que há um potencial considerável. Também os edifícios de distribuição e logística, como armazéns, são uma boa aposta porque, tipicamente, é possível compensar, quase a 100 % – até já vi com mais de 100 % – o consumo de energia com energia solar. O número de pisos num edifício é, na realidade, um indicador importante para perceber o potencial da descarbonização. Se temos um armazém com um piso, uma grande divisão, e com poucas pessoas, é mais fácil descarbonizar. Há outras categorias [de edifícios onde o potencial benefício é considerável]. Os edifícios mais difíceis, diria eu, são os residenciais. É verdade que podemos colocar sistemas solares no telhado, mas em apartamentos isso já é mais difícil por variadas razões – regulamentares, por exemplo, porque nalguns casos é preciso ir de inquilino em inquilino. Tudo é mais fragmentado em comparação com uma empresa com mil armazéns, onde basta fazer um acordo com a empresa para se descarbonizar tudo. É muito mais fácil, até porque no modelo de negócio já está tudo mais padronizado. Quanto maior a complexidade, mais difícil se torna. As universidades também são outro bom exemplo desta dificuldade, pois não há muitos projectos de raiz, tal como outros edifícios históricos. Normalmente, nestes casos, não houve muito investimento e os sistemas são mais antigos, pelo que é mais difícil. Depende muito do tipo de edifício.

A energia, numa perspectiva macro, também é um tema central e a Siemens tem alguns projectos para aportar mais flexibilidade ao sistema eléctrico, o que também envolve a questão do armazenamento. Um dos projectos é na ilha Terceira, nos Açores. Em que consiste este projecto e o que representa em termos de benefícios?

Até agora, estivemos a falar do que pode ser feito considerando um edifício, para se consumir menos energia e aproveitar a energia solar, por exemplo. Mas este edifício existe num contexto, está ligado à rede energética. Quando há um bottleneck na rede, a resolução pode implicar dezenas de milhões de dólares, mas se a rede enviar sinais a todos os edifícios que alimenta para que estes reduzam ligeiramente o seu consumo energético a necessidade deste investimento pode ser evitada. Essa é a questão fulcral – para o edifício pode não ser mais do que 10 ou 15 % de uma poupança adicional, mas para a rede que está conectada é uma grande poupança. É uma área muito recente e há muitos projectos-piloto, mas poucos projectos comerciais. Temos apostado nesta área, com o centro comercial Sello, na Finlândia, que está a ser um excelente exemplo no sector. No caso do projecto da Terceira, trata-se de uma microrrede e, por isso, tem ainda uma componente de resiliência. Até agora, estávamos a falar de poupança de energia por via da comunicação entre a rede e os edifícios. Com um controlador de microrrede, juntamente com um grande sistema de armazenamento, em caso de falha da rede ou se não houver sol ou vento suficientes para a produção de energia numa ilha, por exemplo, passamos a ter ainda a capacidade de assegurar o fornecimento de energia durante algum tempo. É disto que se tratam estes projectos.

Como é que a inteligência artificial se enquadra em todas estas questões?

Há muitas facetas da inteligência artificial. Só para referir algumas, talvez as mais interessantes, temos os algoritmos matemáticos que gerem o edifício de forma inteligente. Os casos de utilização óbvios são aqueles que envolvem um algoritmo que estima o grau de conforto das pessoas num edifício e, com base nisso, pode reduzir ligeiramente a temperatura ou fechar os estores porque o sol está muito forte, tentando manter o conforto. Esse sistema parte de determinadas premissas para “espremer” mais um pouco a possibilidade de reduzir o consumo energético e poupar. É um exemplo óbvio, mas não é de todo fácil ou trivial. Ninguém quer sentir a frustração de o algoritmo estar a fazer isto numa hora que percepcionamos como errada. O sistema ainda não é perfeito, mas está a melhorar. Outra aplicação está na gestão da humidade nos edifícios. Os sistemas actuais não são inteligentes e têm um ponto padrão para a humidade. Mas podemos brincar com isso. Em Singapura, como está quente no exterior e o ar no interior é climatizado, fazer pequenos ajustes considerando os factores de humidade torna possível diminuir a necessidade de arrefecimento, por exemplo. Sabemos que 80 % da humanidade vive em torno da linha do Equador e utiliza bastante o arrefecimento. Melhorarmos 1 % destas definições de arrefecimento através da inteligência artificial – que através de volumes enormes de dados visa perceber as preferências relevantes dos utilizadores – é impactante. Estas são as grandes aplicações. Depois, também há a questão do comportamento da rede, que envolve muitos dados e muita acção em tempo real, com os veículos a circularem, os pontos de carregamento a serem utilizados ou não, com o vento a passar e a obrigar a tomar decisões, etc. Esta questão de ter clusters e sistemas em que se tomam as melhores decisões, não necessariamente de forma autónoma, é outra aplicação útil da inteligência artificial.

Na sua apresentação do Building X, referiu que este processo de tornar os edifícios mais inteligentes é uma oportunidade para atrair talento, mas sabemos que há desafios de escassez neste campo. Como é que a Siemens lida com esta questão?

Bem, nós estamos a promover a mudança para a digitalização, que normalmente torna os empregos mais atractivos, porque é nisso que os millennials estão interessados. Também acho que podemos tornar isto mais atractivo se considerarmos uma frota de edifícios uma espécie de operador digital de um sistema de controlo crítico, onde a pessoa que gere pode fazê-lo de forma eficiente, com a informação correcta, em vez de ter de se dirigir a um edifício e conectar-se ao sistema de aquecimento, numa cave escura, para tentar perceber o que correu mal com o sistema, e depois ter de fazer o mesmo no próximo edifício a 32 km de distância, por exemplo. Tudo se resume à realidade e ao sentido de propósito em relação àquilo que se faz. Gerir milhares de edifícios resulta num impacto gigante na poupança de emissões de CO2, se a gestão for bem feita. Parece-me uma proposta atractiva.

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 148 da Edifícios e Energia (Julho/Agosto 2023).