Com a reformulação do mercado eléctrico europeu em discussão, Jorge Vasconcelos, presidente da NEWES – New Energy Solutions, defende que a energia tem de ser cada vez mais perspectivada como uma plataforma que garante a integração de sistemas e que a escala tem de ser cada vez mais local. Esta foi uma das ideias principais apresentadas ontem pelo responsável durante o evento “Energia e Economia Circular”, organizado pela Associação Smart Waste Portugal (ASWP), no qual foram também debatidos temas como a crise das matérias-primas, a descarbonização da indústria e os resíduos como fonte de energia.
“Para chegarmos à descarbonização do sector da energia, a geração de electricidade sem CO2 tem de crescer três vezes [mais do que] aquilo que tem crescido”, disse Jorge Vasconcelos, ontem, aquando da sua intervenção no evento da ASWP a propósito da crise energética. Isto porque, como explicou o especialista, o futuro reserva-nos “um aumento substancial da procura de electricidade”, sobretudo como resultado da electrificação da mobilidade e do aquecimento, sem que a eficiência energética consiga compensar essa subida.
Também com base nesse pressuposto, a Europa tem avançado com discussões em torno da reforma do mercado eléctrico europeu. “Foi a crise dos preços [de energia] que veio permitir que esta reforma fosse discutida”, sublinhou Jorge Vasconcelos, afirmando, contudo, que esta já era uma necessidade antes da crise, alavancada pela agressão da Rússia à Ucrânia e pela necessidade de garantir a segurança energética.
Recorde-se que a proposta para a reforma do mercado da electricidade europeu foi avançada pela Comissão Europeia no dia 14 de Março deste ano, depois de uma consulta pública lançada no início do ano, com o objectivo de acelerar o recurso a energias renováveis, eliminando progressivamente o gás, e de conferir maior protecção aos consumidores no acesso à energia a preços acessíveis.
Entretanto, já neste mês de Setembro, o Parlamento Europeu deu luz verde para se iniciarem as negociações com o Conselho da União Europeia sobre esta reforma. Depois de este último adoptar a sua posição, poderão iniciar-se as conversações sobre a forma final da reforma do mercado de electricidade europeu com os governos nacionais.
Para aquele que foi também o primeiro presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, este caminho vai ter de passar por uma visão mais integradora dos múltiplos sistemas de energia. “Temos de olhar para a energia como uma plataforma que nos permite uma coisa fundamental: a integração de sistemas” e, nesta visão, assente também na digitalização do sector, será preciso “olhar sobretudo para as nossas cidades, para as nossas regiões, porque é aí que estão três quartos da população e a maior parte da procura de energia”.
Neste cenário, a capacitação dos municípios para a concepção e gestão de plataformas integradoras, a reforma “muito profunda” das redes de distribuição de energia eléctrica, e a redefinição de “novos espaços onde várias transacções [competitivas e cooperativas] possam coexistir” serão alguns dos desafios, sabendo que, na opinião do especialista, não deverá haver uma solução única para toda a Europa.

Tecnologias renováveis e a crise de matérias-primas
O aumento substancial da procura de electricidade vai levantar também questões de acesso a matérias primas para os equipamentos de produção de energia. De acordo com o relatório Critical Minerals Market Review 2023, da Agência Internacional de Energia (AIE), “a implementação recorde de tecnologias de energia limpa como o solar fotovoltaico e as baterias estão a impulsionar um crescimento sem precedentes nos mercados de minerais críticos” e esta procura para as tecnologias de baixo carbono “deverá continuar a crescer rapidamente em todos os cenários da AIE”.
“As tecnologias renováveis são muito mais intensivas em inputs minerais. Uma central eólica onshore exige em média nove vezes mais recursos [minerais] do que uma central a gás e um carro eléctrico standard seis vezes mais do que um convencional”, realçou Maria Isabel Soares, professora da Universidade do Porto, que também apresentou uma sessão gravada sobre a crise das matérias-primas durante a conferência da ASWP.
Caracterizando como “absolutamente assustador” este cenário que aumenta substancialmente a necessidade de matérias-primas para tecnologias que ajudem a avançar na transição energética, Maria Isabel Soares acrescentou que “pior ainda é a velocidade a que tudo isto se está a passar”.
“Se comparar 2020 e 2023, as matérias-primas críticas [em cada ano] mudaram significativamente (…) A evolução tecnológica é aceleradíssima e, por vezes, a dinâmica tecnológica, política e geoestratégica tem uma décollage que pode ser muito problemática e que pode prejudicar os objectivos”, reforçou.
Recorde-se que, também a este propósito, tem havido desenvolvimentos a nível de políticas europeias para tentar assegurar a segurança e a sustentabilidade das cadeias de fornecimento destas matérias-primas. Sendo um agente sobretudo importador (e, por isso, mais vulnerável), a União Europeia quer, até 2030, satisfazer internamente pelo menos 10 % do consumo anual no âmbito da extracção, pelo menos 40 % da transformação e refinação destas matérias-primas críticas e pelo menos 15 % da respectiva reciclagem.
O Acto legislativo europeu sobre as Matérias-Primas Críticas, para o qual a Comissão Europeia apresentou uma proposta em Março deste ano, tal como a Comissão para a Indústria, Investigação e Energia (ITRE) do Parlamento Europeu neste mês de Setembro, faz parte do Plano Industrial do Pacto Ecológico, que visa a transição climática e a competitividade da indústria europeia.
Descarbonização da indústria e resíduos como fonte de energia
Foi também sobre a indústria que a conferência da ASWP acabou por incidir, preparando um painel sobre “a economia circular como estratégia da descarbonização da indústria”. Com a Secil, a Vidrala, a Vista Alegre Atlantis, a EDP Geração e o Grupo Brisa representados, a sessão contou com a experiência de empresas de diferentes sectores na transição climática.
Entre desafios e oportunidades, a dificuldade em optimizar o uso do hidrogénio pelo seu grau de menor desenvolvimento na indústria e pelos preços elevados, a aposta no autoconsumo e na eficiência energética e a estratégia de aproveitamento de resíduos, sejam eles materiais ou energéticos, resultantes dos processos industriais foram alguns dos temas de discussão.
De acordo com Carlos Medeiros Abreu, vogal do conselho de administração da Secil, empresa de produção e comercialização de cimento, betão, agregados, argamassas e cal hidráulica, o aproveitamento de calor residual para energia e para secagem de combustíveis alternativos produzidos a partir de resíduos permitiu alcançar uma eficiência energética dos fornos de 85 %. No caso da Vidrala, por sua vez, algumas fábricas italianas estão a aproveitar o calor dos fornos para aquecer redes de água no país.
Foi precisamente na perspectiva do “resíduo como recurso para a produção de energia” que a ASWP organizou também um segundo painel, no qual participaram representantes do grupo Greenvolt, da Floene, da Veolia Portugal, da PRIO Bio e da LIPOR. “Temos resíduos a serem produzidos onde a energia está a ser consumida”, destacou Sandra Silva, directora de resíduos da Veolia Portugal, como forma de sublinhar que é preciso encontrar formas de “fechar este loop”.
Questões relacionadas com a biomassa como complemento às renováveis, a descarbonização do gás natural, a necessidade de tecnologias como o fotovoltaico, as eólicas e as baterias incluírem material reciclado, o ecodesign dos produtos, a desclassificação de resíduos, bem como a valorização energética de resíduos urbanos e industriais foram alguns dos tópicos em discussão.
Neste campo, a LIPOR – Associação de Municípios para a Gestão Sustentável de Resíduos do Grande Porto partilhou que está a constituir uma comunidade energética intermunicipal, incluindo as autarquias associadas à LIPOR e outras três, que irá ficar desagregada da rede nacional de energia. Isto porque, explicou Fernando Leite, CEO da entidade, actualmente, a LIPOR produz energia que “dá para abastecer uma comunidade com cerca de 150 mil habitantes”.
O evento “Energia e Economia Circular”, organizado pela Associação Smart Waste Portugal (ASWP), teve lugar, ontem, no Auditório da EDP, em Lisboa. Também a EDP, como entidade que acolheu a conferência, teve oportunidade de partilhar as preocupações e os planos da empresa para a transição climática, referindo-se, por exemplo, a aposta reforçada nas renováveis e na inovação, bem como a questão do reaproveitamento dos painéis solares e das turbinas no fim do ciclo de vida.